Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Chico Buarque
Nada como um dia após o outro dia na vida de José: levanta antes do sol, toma banho, toma café, escovas os dentes, sai de casa antes do sol nascer, pega o ônibus até o trabalho, 3 a 5 horas no transporte público, queima lenha, deixa secar, recolhe carvão, vai ensacar, pausa para o almoço, volta para o segundo turno, vai para o segundo emprego, pega uma carona na charrete, bate uma laje, levanta um muro, pega o ônibus de volta para a Baixada Fluminense, mais umas 3 ou 5 horas no transporte, chega em casa, beija a mulher e os filhos, dividem o pão, dorme, sonha, acorda, levanta antes do sol, toma banho, toma café, escovas os dentes, sai de casa antes do sol nascer, pega o ônibus até o trabalho, 3 a 5 horas no transporte público, queima lenha, deixa secar, recolhe carvão, vai ensacar, pausa para o almoço, volta para o segundo turno, vai para o segundo emprego, pega uma carona na charrete, bate uma laje, levanta um muro, pega o ônibus de volta para a Baixada, mais umas 3 ou 5 horas no transporte, chega em casa, beija a mulher e os filhos, dividem o pão, dorme, sonha, acorda, acorda, acorda, ACORDA, JOSÉ!
A peça A Jornada de um Herói narra a história de José, um trabalhador precarizado da Baixada Fluminense, através dos 12 estágios descritos pelo mitólogo Joseph Campbell em seu livro O Herói de mil Faces (1949). São eles: 1. O mundo cotidiano; 2. O chamado da aventura; 3. A recusa ou hesitação do herói em aceitar seu chamado; 4. O encontro com o mentor que irá auxiliar na jornada; 5. A primeira travessia; 6. Testes, aliados e/ou inimigos; 7. Aproximação (o herói tem êxitos durante as provações); 8. Provação suprema (o maior desafio da aventura); 9. Recompensa (o elixir); 10. O caminho de volta para casa; 11. O retorno do elixir; 12. A ressurreição. Cada um desses passos está registrado nos três painéis interconectados no centro do palco, operando como um mural ou mapa mental, presente ao longo de todo o espetáculo e que, nas mãos do ator e da contra regra, se desdobram em ônibus, ruas, bares e vielas.
O ator e dramaturgo, Mateus Amorim, canta e conta de que forma José, mais um Silva cuja estrela não brilha, deixa de ser um anônimo e se torna o herói protagonista dessa história. Tudo começou quando seu patrão encurtou seu tempo de almoço, passando de dez minutos para cinco minutos. José, que já havia sentido a mudança anterior, quando o intervalo de almoço deixou de ser de quinze minutos e passou a ser dez, não pode conter sua indignação e deixou escapar uma reclamação. O patrão, que não tolera divergências, decide demiti-lo. É com esse episódio que José é chamado à aventura: a busca pelo dinheiro do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). A partir daí, José vai seguindo os doze passos de sua jornada, atravessando horas em um transporte público precarizado, tentando não perder o outro emprego que tem, passando fome, sempre na dependência de terceiros para conseguir encontrar o que precisa, pois José não sabe ler e nem sabe como funcionam as instituições das quais depende para conseguir sacar o seu dinheiro.
Fiel às referências que pavimentam o teatro político, é possível notar procedimentos oriundos do Teatro Épico brechtiano e do Teatro do Oprimido de Boal – ambos fundamentados em uma poética marxista. José não é um personagem movido por questões psicológicas e subjetivas. Nem mesmo temos acesso a detalhes acerca de seu passado ou questões singulares de sua subjetividade. José é um personagem determinado pelas relações sociais, sendo portanto um personagem-objeto e não um personagem-sujeito; são as contradições de forças econômicas e políticas, intrínsecas à estrutura social, que movem a sua trama. A peça não oferece um final catártico ou purificador que redimiria todas as opressões experimentadas por José. A redenção não virá de uma intervenção mágica no enredo da peça. O elixir com o qual José retorna para sua casa, não passa de um punhado de farinha que ele ainda irá dividir entre ele, a esposa e os filhos. Sem pão nem previsão de uma situação econômica mais confortável, apenas resta a José dormir e sonhar com um prato cheio. “Por essas razões é afirmado que uma peça de Teatro do Oprimido não termina; mesmo com o seu término, ocorre o desequilíbrio brechtiano, que agita os presentes e dá impulso para ações sociais concretas e continuadas.”1 Ou seja, com o fim da apresentação, dá-se início à reflexão do espectador ou espectadora que irá tomar consciência das falhas na sociedade e promover ações que alterem sua realidade.
Promover um retrato da realidade a ser alterada é sempre um desafio, pois o que se mostra em primeiro plano é a nossa interpretação dessa realidade – como a percebemos e vivemos –, antes do real em si. Portanto, como estamos inseridos nas estruturas sociais – e não acima ou fora delas – frequentemente incorremos na reprodução de padrões forjados no centro dessa estrutura que desejamos modificar. Para ficar com exemplos presentes na peça A jornada de um herói, podemos citar a representação do feminino através das personagens de Sheila – a funcionária do RH –, a senhora segurando um assento no transporte público e das mulheres que brigam por esse assento. Na jornada de José, Sheila ocuparia o lugar de “mentor” – comumente associada a figuras masculinas e mais velhas, como define o próprio ator e dramaturgo –, mas ao invés de nos surpreender com esse papel sendo ocupado por uma figura jovem e feminina, o que acontece é uma subversão da própria função do mentor que, nesse caso, não instrui o herói. Da mesma forma, as mulheres retratadas no transporte público são a “velha com todas doenças”, a mãe sem controle dos filhos em uma rivalidade feminina com a outra mulher descrita de forma rasa, como uma mulher fútil fofocando no celular, enquanto nosso herói se mata pelo seu lugar. O que essas personagens apontam é para um limite do próprio Teatro do Oprimido quando esse não leva em consideração a intersecção de classe, raça e gênero, como nos aponta Bárbara Santos, idealizadora do Teatro das Oprimidas, na seguinte passagem:
Apesar de convocar a consciência política, de rasgar os véus que cobrem os olhos, de ventar as
cortinas de fumaça que embaçam a realidade, de abrir a possibilidade de acesso a nova
expectativas e de alterar nossa percepção sobre nós mesmos e sobre o mundo diante de nós,
também o Teatro do Oprimido ainda carecia de antídotos antipatriarcais eficientes. […] As
estratégias patriarcais que naturalizam machismo, sexismo e violência machista, são difundidas e
praticadas nos mais diversos espaços sociais, inclusive, no mundo de praticantes do Teatro do
Oprimido, onde essas estratégias, muitas vezes, aparecem de forma tão sofisticada que chega a
dificultar a identificação e o combate às mesmas (SANTOS, 2019, p. 20)2
A jornada de um herói tem como tema as batalhas cotidianas dos inúmeros heróis anônimos em busca do pão de cada dia. Apesar de abordar questões relacionadas às violências diárias às quais são submetidas as pessoas oriundas das classes mais vulneráveis socialmente, o ator mantém o bom humor ao longo da narração, canções e interações com o público. Como Mateus Amorim afirma: “a comédia é a arma do povo”. Portanto, não se trata de chorar as opressões de José, mas de refletir sobre elas: refletir sobre a ausência de Josés nos espaços de lazer, sobre as horas do dia que os Josés não tem para si, sobre o valor de seu trabalho, a falta de reconhecimento e a invisibilidade de seus corpos nos espaços, atrelada à falta de acessos e oportunidades. A peça não tem a pretensão de apontar soluções para essas questões. Da mesma forma, nesta crítica, não tenho outra intenção se não a de formular ainda mais provocações. Reflitamos, portanto, para além dos Josés. Pensemos nas Sheilas, nas esposas dos Josés – que para que o José tenha uma comida na marmita, sua esposa teve que tirar um tempo para prepará-la, assim como separa um tempo para cuidar dos filhos e da casa –, pensemos ainda nas mães solo e nas senhoras de idade expostas ao mesmo transporte de péssima qualidade, mas com condições físicas ainda mais debilitadas para estarem disputando aquele espaço – ou qualquer outro.
Mateus Amorim divide o palco com a contrarregra Karen Menezes, que maneja diante da plateia luzes, sombras e intervenções sonoras. Diferentemente do carvão ensacado por José, que vai parar em nossas churrasqueiras sem que nós saibamos o trabalho que exige para que ele chegue até lá, o trabalho aqui não é apagado ou tirado de cena. Ele é visível – e feminino. Acompanhamos a realização de cada procedimento utilizado, todos tecnicamente simples, mas que produzem efeitos surpreendentes na iluminação do espetáculo junto ao refletor e as demais luzes operadas da cabine por Amanda Sibanto sob a direção de Alexandre O. Gomes (também responsável pela direção da peça e direção de movimento).
A peça vencedora do Prêmio Shell por sua iluminação (2023) honra as suas raízes ao abordar a vida do trabalhador da Baixada. A jornada de um herói é uma realização da Cia Atores da Fábrica e Escola Fábrica dos Atores, uma companhia de teatro nascida em 2005 na Baixada Fluminense, comprometida com a democratização do acesso ao teatro e a proliferação do pensamento crítico-reflexivo. Em um mundo cão povoado por inimigos e provações – como o descrito na peça –, é preciso reconhecer os aliados e aliadas. Se a opressão é compartilhada, então é possível a intersecção entre as lutas. Aceitemos, portanto, o convite para refletir e conspirar coletivamente outras estruturas e relações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1 SENDA, Alexia. Augusto Boal: O teatro político? Disponível em: Augusto Boal: O teatro político? (novacultura.info) Acessado em: 13 de maio de 2024.
2 SANTOS, Bárbara. Teatro das oprimidas: estéticas feministas para poéticas políticas. Recife: Casa Philos, 2019.

Filósofa, crítica de teatro e pesquisadora em feminismos e saberes decoloniais, Annelise Schwarcz é licenciada em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e mestra em Filosofia pela mesma instituição na linha de estética. Atualmente é doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pela linha de gênero, raça e colonialidade. É também cofundadora do COGA.Lab, onde ministra ciclos de leitura e oficinas de escrita.