CRIADORAS E CRIATURA: SOBRE A POSSIBILIDADE DA AUTONOMIA ARTÍSTICA | Por Rosyane Trotta

Apesar do nome, a Assis Produções não se constitui como uma empresa que atua na representação comercial de diversos produtos. Ela surge para abrir caminho à estreia de uma jovem diretora que inicia sua carreira com “Me chama de Alyce”, reunindo três atrizes e dois atores – a maioria, como ela, proveniente do município de São João de Meriti. O espetáculo apresenta texto próprio, o que agrega à Assis a coragem do empreendimento autoral, a partir de suas próprias referências e de seu olhar sobre a realidade.

Não tenho informações sobre o processo criativo – se as atrizes colaboraram na construção da peça ou se atuam como intérpretes (vou me referir às participantes, na maioria mulheres, no feminino). Há unidade na atuação, em torno de corpos naturalistas e gestos cotidianos. As atrizes articulam pouco os lábios, correm na fala, colocam ênfase em palavras pouco importantes para o sentido, e essas características me fazem supor que o texto não é delas e foi decorado no papel. “Me chama de Alyce” segue o textocentrismo, estética que organiza o processo e a encenação em torno da palavra.

A peça trata de um grupo de quatro adolescentes, colegas da mesma turma de escola. Três meninas e um menino do ensino médio vivem o medo da reprovação, mas estão ocupados em se divertir – o que, em seu universo, significa patrulhar os amigos, falar mal dos conhecidos, eleger divas, fazer vídeos, mentir, dormir, chamar atenção. As cenas são conversas em dupla, trio ou quarteto, às vezes interrompidas pela professora autoritária ou pela voz da mãe que grita da coxia. Preconceitos diversos falam pela boca dos adolescentes: a sexualidade, o corpo, o cabelo, tudo está sob sua mira. Enquanto eles opinam sobre os outros, as autoras do espetáculo opinam sobre eles. As falas, proferidas como piadas, convocam o riso cúmplice do público, composto por adultos. Na sessão em que estou, alguns conhecem pessoalmente as atrizes e há grupos de amigos, o que torna a participação mais livre, pela intimidade entre os presentes.

Muitos estudiosos se dedicaram ao tema da comicidade. Enquanto o choro é individual e comedido, o riso é coletivo e sonoro. Ri melhor quem ri em grupo. O que faz uma plateia rir? Na Idade Média se ganhava dinheiro expondo nas feiras corpos que provocavam repulsa e contra os quais se podia lançar qualquer escárnio, injúria ou abjeto. Até o século XXI, os programas de humor da televisão tinham como alvo predileto gays, analfabetos, surdos, idosos, desdentados. No teatro, historicamente, a derrisão caracteriza o riso que se destina a expor ao ridículo o traço de caráter que se quer corrigir.

No palco do Teatro Cândido Mendes, uma personagem convida a amiga para um show em São João de Meriti. Gargalhadas na plateia. Um espectador comenta: “se ainda fosse na Pavuna”. Em outra cena, um personagem vem até o público criticar sua colega e fazer pouco de seu sonho. Com quem o espectador se identifica, com o maledicente ou com a sonhadora? Com quem ele ri e de quem ele ri? A resposta a essa pergunta revelará o que o espetáculo diz ao público e, portanto, quais são as ideias de suas autoras.

Quando se atribui à adolescência um caráter, quem fala é o adolescente ou os adultos produzem esse estereótipo?

Quando se desqualifica a periferia, quem fala é a periferia ou o preconceito que vem do centro?

Se levamos para a cena a linguagem da televisão, ainda há teatro?

Suponho que não haja intenção, por parte das autoras, de desqualificar o adolescente, a periferia ou o teatro. Suponho que elas não percebam a perversa inversão que obtiveram. Ocorre que estamos todas e todos impregnados da cultura massificante que coloniza corpos e mentes. Quanto mais negamos sua existência em nós, mais distantes ficamos de impedir que ela fale por nossa boca. Como descolonizar os corpos? O diretor Aderbal Freire Filho disse em entrevista que o ator precisa dominar os seus meios de expressão para que eles não sejam involuntariamente tomados por formas e ideias que não pertencem à cena. Se entendemos “domínio” como dedicação, podemos dizer que o coletivo precisa se dedicar a uma prática conjunta de investigação para que as formas que cria correspondam às ideias que unem seus integrantes. Seria, a meu ver, a única forma de chegar a um teatro que escape à reprodução cultural e ideológica. Sendo o teatro uma arte coletiva, só um processo coletivo consegue alcançar a dramaturgia da cena.

ESTE É UM ESPETÁCULO DA ASSIS PRODUÇÕES


Rosyane Trotta é professora de Direção Teatral da UNIRIO, pós-doutouranda da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), bolsista produtividade CNPq com projeto sobre teatro de grupo nas periferias do Rio de Janeiro, pesquisadora de modos de produção, criação e organização em coletivo, dramaturga em processos colaborativos.

Outras Críticas