VIDAS PRECÁRIAS | Por Annelise Schwarcz

Jucundina       Jerônimo        Zefa              Tonho              Noca              Ernesto          Jão                 Neném                  Zé        Marta             Agostinho      Gertrudes       João Pedro                Dinhá               Tadeu              Juvêncio          Macedo                     Valverde         Quirino           Lurdes                  Agnaldo                    Ricardo                       Lucas                         Beato  Estêvão         

“Esses são só alguns nomes daqueles que atravessaram o sertão rumo a São Paulo em busca de trabalho. Você não precisa guardar esses nomes. Podem esquecê-los, pois eles já morreram na estrada da fome”.

Em Quadros de Guerra, a filósofa Judith Butler desenvolve uma distinção entre as vidas precárias –  “há ‘sujeitos’ que não são exatamente reconhecidos como sujeitos e há ‘vidas’ que dificilmente – ou melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como vidas” (BUTLER, 2019, p. 17) – e as vidas enlutáveis, ou seja, vidas passíveis de luto. Vidas que são enquadradas como vidas e, por isso, podemos sofrer a sua perda.

No livro em questão, escrito originalmente em 2004, Butler tem como objetivo desenvolver um debate acerca do que torna mais fácil ou mais difícil empreender uma guerra contra determinadas existências. No entanto, a descrição de vida precária poderia descrever perfeitamente as existências em cena na peça Três Irmãos, da Cia. Cerne, ao retratar a trajetória dos migrantes nordestinos brasileiros, em 1940, rumo à cidade de São Paulo em busca de trabalho. Existências precárias, sem comida nem garantias, existências tristes, sofridas, de raro gozo e poucas alegrias, existências deixadas à mingua que, ao morrerem, morrem sem lápide ou cova. Viram comida de urubu. Somente os mais próximos lembram seus nomes ou choram sua partida, mas por pouco tempo. Mal se assimila uma perda e ela já é sucedida por uma nova. Quando um dos narradores da peça Três Irmãos vai ao microfone e nos informa que podemos esquecer aqueles nomes, pois eles já morreram na estrada da fome, penso comigo que o que vamos assistir, naquele momento, será uma peça da perspectiva da precariedade. Como conferir voz e vida àquelas/es que não foram enquadrados como dignas/os de nenhuma dessas duas coisas?

Três Irmãos se baseia no livro de Jorge Amado Seara Vermelha, escrito em 1946, durante seu mandato como deputado federal pelo Partido Comunista. A iniciativa de enquadrar essas narrativas veio antes de Amado que, influenciado pelo lema leninista, relacionava o lamento sertanejo com o drama de todo proletário em busca de “pão, terra e liberdade”. Seara vermelha do sangue jorrado pelas gentes que passavam ali, que morriam pela fome, pelo cansaço, pelo calor, por negligência do governo, por maldade dos donos de terras, do exército ou pelo cangaço. Mas Amado apostava no dia da colheita de todos esses “brotos de dor e de revolta” e o vermelho da seara poderia ser ressignificado pelas cores da bandeira comunista.

Seara Vermelha tem como plano de fundo o cenário da caatinga, mas é cria da Baixada Fluminense, mais precisamente de São João de Meriti, sendo, portanto, conterrânea da Cia. Cerne. Fruto de uma pesquisa em torno da construção da memória de São João de Meriti, a companhia Cerne resgata figuras que moraram na cidade a fim de não deixar cair no esquecimento as histórias que atravessam a conformação do município. A peça, inspirada livremente pelo livro de Jorge Amado, adapta o texto para o teatro mesmo ciente de que “toda adaptação é uma mutilação do autor”, como afirma uma das atrizes (Gabriela Estolano). Mas essa mutilação é justificada por citações do próprio autor, pois assim o acesso a analfabetos estaria garantido, assim como o acesso a pessoas que têm predileção pelas artes da cena no lugar da literatura, e sobretudo Amado poderia lucrar com a venda do direito do texto, sua principal fonte de renda.

Ao entrar no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon, somos recebidas/os por uma balada, onde assistimos às atrizes e aos atores em cena dançarem e cantarem a música “Copacabana”, de Dick Farney, uma das mais ouvidas no ano de 1946. Oscilando entre uma montagem biográfica, trazendo detalhes dos bastidores da vida de Amado ao longo da escrita do livro, e a adaptação do texto, somos situados no contexto do nascimento de Seara Vermelha: uma noite em um baile, no qual Amado deveria marcar presença e, por insistência de sua esposa Zélia, estava ali entre brindes e valsas, ao invés de estar em casa escrevendo o livro cuja história não o deixava se concentrar no evento que presenciava.

A história diz respeito a uma família composta por Jucundina, Jerônimo, Zefa, Tonho, Noca, Ernesto, Neném, Jão, Zé, Marta, Agostinho e Gertrudes, João Pedro e Dinhá, que atravessa o sertão rumo a São Paulo. Ao longo da peça, vamos assistindo a essa família minguar, morrendo alguns de doença, de fome, outros de cansaço ou de morte matada. Alguns ainda encontram trabalho pela caminho e desistem de ir até a cidade, outros simplesmente são abandonadas/os, sendo deixadas/os para trás por escassez de comida ou por desafiar moralismos da família, como a filha que se prostituiu em troca de uma passagem de trem para o pai ir para São Paulo. Apesar do narrador afirmar que podemos esquecer aqueles nomes, é reiterado diversas vezes os nomes das/os membras/os da família e sua posição na árvore genealógica, como quem não quer que esqueçamos seus mortos, pois suas vidas são dignas de luto.

Com seis atrizes e atores no palco, a dinâmica das atuações consiste em um revezamento no qual um ator/ uma atriz se destaca do grupo e ocupa o papel de narrador/a, de fora da cena, enquanto o restante apresenta quadros congelados de uma determinada situação ou encenam a história que o/a narrador/a descreve como moldura daquilo que vemos. Tal procedimento pode ser exemplificado pela cena na qual a família chega em uma fazenda, durante a noite, e pede por abrigo. O narrador dessa passagem é um mágico (Higor Nery) intervindo na cena e interagindo com os demais atores e atrizes – em uma espécie de dentro e fora da cena – a tirar cartas e realizar truques adicionando mais uma camada de sentido ao que assistimos. No entanto, o artifício da mágica não retorna. Pertence apenas a esse momento e os narradores seguintes retomam a sobriedade com a qual a peça se inicia.

Destacam-se os jogos com a iluminação, que proporcionam cenas como a busca da gata, na qual assistimos no escuro as atrizes e atores correrem atrás de um feixe de luz que lhes escapava como se fosse a gata; e a cena na qual a mãe (Elizândra Souza) se despede dos três filhos, através de uma coreografia de corpo que remetia ao gestual do orixá Nanã, e entra em um portal de luz. A partir dessa cena, dá-se início a uma espécie de segundo ato da peça com os monólogos dos três irmãos interpretados por Rohan Baruck, Madson Vilela e Leandro Fazolla, como o cangaceiro, o soldado e o comunista membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL), respectivamente. Com menos corpos em cena (apenas metade do elenco), a peça adota um discurso mais introspectivo, com atores falando na primeira pessoa e explorando a dimensão psicológica de seus personagens, oscilando entre um fluxo de ideias e a narração de sua história.

Os monólogos contam o destino de cada irmão por meio de um sistema coringa (sistema idealizado por Augusto Boal no qual o mesmo ator se reveza na interpretação de diferentes papéis). Por exemplo, o ator Leandro Fazolla é responsável, ao mesmo tempo, por interpretar um dos irmãos, o beato Estêvão, Jorge Amado e ele mesmo – ao quebrar a quarta parede e se dirigir ao público, narrando a experiência de quase acender um cigarro dentro do teatro. Com a sobreposição de personagens, o sistema coringa imprimiu um ritmo, por vezes, confuso à segunda parte da peça.

Outro ponto que marca uma distinção entre o primeiro ato e o segundo ato da peça é a condução da temporalidade. Se na primeira parte assistimos a peça atravessar uma cronologia aparentemente linear – interrompida apenas pelas cenas biográficas de Amado –, a segunda parte da peça fragmenta a linha do tempo. Os três monólogos são narrados em sequência, com diferentes pontos de vista de uma mesma cena sendo abordado pelos primeiros dois irmãos, enquanto o terceiro irmão, um comunista no quartel, pode estar ou não vivendo o seu relato na temporalidade dos demais. Investindo em  figuras como a do microfone transformado em uma metralhadora ou a do comunista ferido agonizando no fundo do palco – criando uma ilusão como se o assistíssemos de cima, deitado no chão –  o terceiro monólogo transmite uma espécie de autonomia em relação aos demais, traçando uma conexão entre o posicionamento comunista do terceiro irmão e a posição política de Jorge Amado. Embora todos os monólogos sejam narrados de forma isolada, o cangaceiro e o soldado do exército estão vivendo, ainda que de lados opostos, uma batalha envolvendo a figura do Beato Estêvão, já o terceiro irmão – o comunista – está vivendo a ocupação de um quartel com outros membros da ANL.

Além do trabalho de memória, a encenação do romance busca também uma reatualização do livro ao traçar paralelos com o Brasil de 2024. O desamparo do trabalhador nordestino diante do cangaço e a relação de políticos locais com a contratação dos serviços dos cangaceiros – que pregavam uma solução para a violência no sertão sem, no entanto, deixar de financiar e contratar o serviço de cangaceiros – poderia ser comparada à atuação de políticos brasileiros que igualmente pregam o fim da violência e bandidagem, mas mantém vínculos com milícias e financiam seus serviços. O monólogo do cangaceiro é o mais enfático nesse sentido, simulando atos falhos com termos como “milícias”, “Vivendas da Barra” e etc.

Três irmãos nos coloca de frente com o tema da precariedade da vida adaptado para nossos tempos e questões. Se em 1940 as opções possíveis para três homens pobres era enveredar pela criminalidade, entrar para as forças armadas ou virar inimigo do Estado perseguindo o sonho comunista, quais são as opções hoje? Qual o lugar da utopia? Onde há vida que pulsa, ri e goza? Quais vidas choramos e nos enlutamos pela morte? Quais seus nomes? Qual é o rosto e o local da precariedade hoje e – principalmente – como subvertê-los?

ESTE É UM ESPETÁCULO DA CIA CERNE


Filósofa, crítica de teatro e pesquisadora em feminismos e saberes decoloniais, Annelise Schwarcz é licenciada em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e mestra em Filosofia pela mesma instituição na linha de estética. Atualmente é doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pela linha de gênero, raça e colonialidade. É também cofundadora do COGA.Lab, onde ministra ciclos de leitura e oficinas de escrita.

Outras Críticas