Assisti a duas apresentações de Três Irmãos: na exígua Sala 2 do Sesc Tijuca e no Teatro Municipal Café Pequeno. Em ambas, ao mesmo tempo em que eu (per)seguia a história, era atraída pelo modo como ela se contava. O jogo dos corpos e das vozes cria um efeito de coralidade que, como queria Brecht, diz ao espectador todo o tempo: você está no teatro. A coreografia, não de gestos idênticos e simultâneos como na dança, mas de gestos complementares que se sucedem como uma bola que passa de uma mão a outra. Essa plasticidade regida a partir de um ponto de vista externo à cena produz a mágica da sincronia, como se o caos natural da vida subitamente entrasse em consenso.
A história é narrada na terceira pessoa, com todo o elenco revezando a função de narração e a representação das personagens. Todos na ficção pertencem à mesma família, à mesma classe social, vivem a mesma luta pela vida. Não há vilões nem heróis, ninguém é tão infame que não mereça afeto nem tão nobre que não permita riso. Não há protagonismo. Esses elementos, acrescidos de espacializações que posicionam os atores de frente para o público e para ele constroem as imagens, me trouxe a percepção de atores-narradores. Mas me parece mais correto dizer que se trata de uma trupe narradora, já que o que se esculpe ali não são narradores individualizados, mas um conjunto que trabalha em sintonia e unidade de atuação.
A predominância do revezamento, da partitura e do ritmo do jogo tornam as personagens da ficção figuras em esboço, referidas mais do que presentificadas – o que dá leveza aos momentos mais cruéis. Esta teatralidade potencializa a poesia nos momentos de quietude, quando o foco se volta para um gesto e seu sentido na ficção. Na minha leitura, a composição de ritmos, intensidades, volumes, deslocamentos cobre a história de certo formalismo, lembra as linguagens codificadas do teatro de convenção. Tenho a sensação de que tudo está previsto, tudo foi arrumado e não haverá desencaixe. Entendo que o ator é peça de um pacto coletivo e não poderá romper a representação.
No modo de organização, produção e criação da Cia Cerne, cabe ao diretor dos espetáculos também as funções de produção, dramaturgia e direção de grupo, em configuração análoga à de companhias organizadas por encenadores, inclusive aquelas em que, como no Berliner Ensemble, o dramaturgo escrevia e reescrevia o texto a partir dos ensaios. A pesquisa mira a construção da linguagem, da cena e a estrutura narrativa do universo fabular, ela se concentra sobre o “como fazer” da obra – diferentemente da configuração que emergiu na segunda metade do século XX com os grupos teatrais, ela não abrange o “o que” ser e fazer do grupo.
Quero ponderar com o leitor que estes pensamentos não pretendem escalonar valores artísticos, mas identificar atributos do modo de produção que desembocam no espetáculo, a parte pública da trajetória artística. Como pesquisadora de processos, sem formação em crítica teatral, exercito e compartilho aqui a conexão da cena com todo o trabalho que não vemos.
Sendo este o quarto espetáculo que assisto do repertório da Cia Cerne, observo que algumas características aqui apontadas estão presentes, com variações, em sua “teatrografia”, o que parece decorrer da manutenção de um conjunto de artistas que se aprimoram e amadurecem seu trabalho. Nos trabalhos para público infantil, a companhia investe na leitura do mundo a partir de cidadãos, classe dominante e representantes eleitos, enfim, apresenta à criança a organização política da cidade e seus problemas. Nos trabalhos para público adulto, ao menos os que assisti, se divulga em primeiro plano na sinopse e também se menciona dentro do texto a relação do projeto de montagem com o município de São João de Meriti, sede da companhia. Não tendo dúvida de que a arte produz subjetividade, posso afirmar que esses artistas, que viajam o estado, têm colaborado para a representação de Meriti como território cultural.
Três Irmãos parte da história de uma família que vive o abandono e a miséria até o esfacelamento. Só então somos apresentados a cada um dos irmãos e sua história pessoal. Fica, na minha memória da experiência, a montagem que o grupo de Meriti faz de um romance que Jorge Amado escreveu enquanto morava em Meriti e uma história de retirantes que me faz pensar de quantos retiros e retirados foi feito meu país. De quantos escorraçados.
Encerro com a fala de um grupo da periferia de São Paulo:
O historiador tupinambá Casé Angatú nos trouxe imagens dos
primeiros migrantes nordestinos de São Paulo e foi incrível
reconhecer ali corpos indígenas. A certidão de nascimento
simbólica do Nordeste está no Manifesto Regionalista, de
Gilberto Freire, de 1926; de lá veio se construindo o imaginário
sobre o que é ser nordestino. “O Nordeste” é uma categoria
recente, uma identidade sobreposta a outras identidades,
uma ficção que, se a gente escavar, chega a outras camadas.[1]
Também no Rio de Janeiro há comunidades criadas e até hoje compostas majoritariamente por migrantes nordestinos. À espera de escavação.
ESTE É UM ESPETÁCULO DA CIA CERNE
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
[1] Ana Carolina Marinho, do Coletivo Estopô Balaio, na abertura da oficina que iniciou o processo de criação Reset América Latina, no dia 29 de fevereiro de 2024.
