Qual é o seu verdadeiro nome?
AFROEMANCIPADOS/DAS
Neste corpo armadura
Envolto em tecido palavra.
Praticamos gestos mágico cotidianos.
Ocupamos a vida com a nossa voz
Convocamos a voz silenciada para a vida
Encantamos a morte.
(Dione Carlos – Black Brecht)
O peito do pé de Pedro é preto. Quem disser que o peito do pé de Pedro é preto, tem o peito do pé mais preto do que o peito do pé de Pedro.
Um peito do pé preto sai debaixo de uma coberta de feltro.
Corpos cobertos por cobertas de feltro ocupam o palco. Debaixo deles escapam alguns pés e mãos, o que denuncia que ali estão pessoas. Pessoas que dormem ao som de um ritmo percussivo. No fundo da cena, uma figura de capuz em frente ao microfone. Aguardamos que ela fale. E quando fala, da sua boca saem nomes. Nomes de pessoas negras executadas em vários estágios da vida, crianças e adultos, de Gambazinho à Marielle. Esses mesmos nomes anunciados como um rito de iniciação, voltam em determinado momento da peça bordados em um grande tecido. Um nome, segundo o site da justiça do brasil “é um elemento de individualização da pessoa na sociedade.” Os nomes chegam dentro do espetáculo como uma maneira de fazer com que aquelas vidas continuem existindo e ecoando fora e dentro de cena. E assim como os nomes nos tecidos, palavras como “coragem, “fé” e “luta” estão bordadas nos figurinos dos atores, como se quisessem que essas palavras também continuassem ecoando em suas costas, pés, cabeças.
“Candelária” é uma peça concebida pela Trupe Investigativa Arroto Cênico, de Nova Iguaçu. Espetáculo de estreia do diretor Madson Vilela, que também está em cena como ator, a narrativa traz como ponto de partida a chacina que aconteceu na Candelária, região central do Rio de Janeiro, em 1993, e que acarretou na morte de 8 jovens executados pela polícia. A peça cruza outros dois acontecimentos históricos: a chegada do primeiro navio negreiro, em 1525 e a participação do Brasil no Congresso Universal das Raças, em 1911, com o intuito de facilitar a vinda de europeus para o país para embranquecer a população. Para costurar os acontecimentos, o texto da dramaturga Karla Muniz, que também está em cena, opta por dividir a peça em três partes, cada uma dedicada a narrar um deles. Os atores interpretam crianças em situação de rua, e encenam os eventos como se fosse tudo uma brincadeira de faz de conta. Crianças brincando de fazer teatro enquanto apresentam os fatos para a platéia de forma quase didática.
O cerne da encenação está na relação entre esses acontecimentos atemporalmente. Ou melhor: como chegamos até aqui?
“Se o Branco é a expressão (universal do humano) quem
não for branco não é tão humano assim… isso se alguma
humanidade chegar mesmo a ter… então, para estes, restará,
à primeira vista, duas opções: ou aceitar a sua animalidade
impulsiva – e quem sabe até se orgulhar dela em um movimento
de narcisismo invertido – ou, embranquecer, pois o branco –
insisto nessa caricatura colonial – é a expressão universal do
gênero humano.” ¹
Entendendo que historicamente o branco foi e é sinônimo de humanidade, “Candelária” nos aponta o quanto ainda estamos operando a partir de um sistema injusto e desigual que desumaniza corpos e os coloca em situações precárias e de difícil acesso. Executadas covardemente e com suas vidas e sonhos interrompidos, as crianças da peça não esquecem de brincar e de serem, sobretudo, crianças.
Sinto vontade de assistir as atuações habitando lugares que não são tão fiéis à forma e que confrontem o imaginário popular, fugindo da mimesis e da reprodução do que seria uma criança em situação de rua, para surpreender a platéia com outras nuances e subjetividades.
O trava-línguas foi um ótimo dispositivo para misturar o universo infantil com a realidade das ruas e do recorte racial. Inicialmente é trazido “o peito do pé do pedro é preto”, e ao final do espetáculo “três tigres tristes”, enquanto o ator Marlon Souza nos apresenta três tigelas vazias, fazendo uma analogia a fome e ao vazio. Paralelamente aos trava-línguas, o espetáculo quer sublinhar a importância de destravar as línguas. Como quando, por exemplo, um dos atores nos pontua a importância e o direito de dizer não, após responder “não” a várias perguntas e ordens, rejeitando um papel servil. Me vem a figura de Anastácia na cabeça, que foi obrigada a usar uma máscara punitiva de ferro por ter se recusado a se deitar com seu patrão. E principalmente, a versão “Anastácia livre” feita pelo artista Yhuri Cruz, que retira sua mordaça e nos apresenta uma mulher com a boca amostra, dando um leve sorriso.
“O colonialismo, em seu amplo repertório de assassinatos,
tem como marca efetiva a aniquilação de linguagens e o
amordaçar bocas via imposição do silêncio e da conversão.” ²
Destravar a língua é como escrever coragem no meio das costas.
“Destravar”, segundo o dicionário, significa “soltar(-se) a trava de (algo); liberar.”.
O que é então a liberdade?
Quem tem a liberdade de dizer não?
Quem pode transitar livremente pela cidade? Pois se estamos falando de pessoas que dormem e acordam na rua, precisamos falar de uma cidade cheia de fronteiras.
Em determinado momento, um dos atores escuta da mãe para tirar o capuz quando sair de casa, por medo do filho sofrer alguma repressão policial. O que nos leva diretamente a figura inicial da peça que veste justamente um capuz enquanto fala nomes de pessoas que não estão mais aqui.
Em outro momento, a atriz em cena canta, e enquanto canta abre os braços como se fosse o Cristo Redentor de uma Cidade que é Maravilhosa só para alguns.
“A guerra sim. Disso eu entendo. A guerra que acontece na esquina
de casa. Que assola o coração o coração das mães e dos pais. (…)
Mães como eu. Mães que repetem sempre a mesma fala, todos os
dias, na porta de casa, antes dos filhos saírem. A gente nunca
sabe se o filho ganha a rua ou se é a rua que ganha nosso filho.
Por isso, a gente repete: leva o RG, não sai de chinelo, não corre,
não faz movimento brusco, obedece, me liga, não anda em má companhia,
já sabe como é, se estiver junto com quem errou, você paga o pato.“ ³
Durante o momento em que a trupe está encenando a chegada dos negros escravizados no Brasil, o ator Jonathan Floriano faz um monólogo onde ele transita por várias emoções gradualmente enquanto olha firme nos olhos do público. Ele ri, sua e se emociona. De repente sai de sua boca a palavra banzo, que teve origem em Angola.
Na língua QUICONGO: pensamento, lembrança; e no QUIMBUNDO: saudade, paixão, mágoa.
“Banzo conflui em si todas essas palavras em português que
remete a um estado de desassossego na alma, convulsionadas
por uma exterioridade de terror, morte, escravidão, tortura.
É a síntese profunda de uma existência moída em dor por uma
estrutura social, política e econômica aterrorizadora. O banzo
constrói o ser negro(a) macambúzio(a), um casmurro em zanga,
que sente todo o terror da existência nesse chão suspenso
e cheio de interdições que o colocaram.” ⁴
“Candelária” nos serve de lembrete. Misturando datas e registros em um tom didático, a peça junta recortes de atrocidades passadas para nos fazer olhar para a realidade do presente, enquanto nos perguntamos sobre o futuro, afinal “como produzir ações antirracistas, contracoloniais, inventar e inventariar a vida com base naquilo que não se pode esquecer?” ⁵
Talvez fazendo morada no tempo e deixando que banzo se transforme em aruanda.
ESTE É UM ESPETÁCULO DA TRUPE INVESTIGATIVA ARROTO CÊNICO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon, a branquitude e a racialização: aportes introdutórios a uma agenda de pesquisas. In: MULLER, Tâni M. P.; CARDOSO, Lourenço (Org.). Branquitude: estudos sobre identidade branca no Brasil. Curitiba: Ed. Appris, 2017.
2. Rufino, Luis. Sabença jongueira: inscrição de vida como palavração de mundo. In: GALDINO, Victor; MEDEIROS, Claudio (Org). Experimentos de filosofia pós-colonial. Rio de Janeiro, Editora Politeia, 2020.
3. CARLOS, Dione. Black Brecht. São Paulo, Glac Edições, 2020.
4. NUNES, Davi. Banzo: Um estado de espírito negro. 2017. Disponível em: https://ungareia.wordpress.com/2017/12/23/banzo-um-estado-de-espirito-negro/
5. Rufino, Luis. Sabença jongueira: inscrição de vida como palavração de mundo. In: GALDINO, Victor; MEDEIROS, Claudio (Org). Experimentos de filosofia pós-colonial. Rio de Janeiro, Editora Politeia, 2020

Gaba Cerqueda é artista interdisciplinar, pesquisadora e escritora. Atualmente cursa Licenciatura em Teatro (UNIRIO), tendo se formado no Núcleo de Formação Intensiva em Dança Contemporânea (Centro de Artes da Maré). Pensando em encenações cruzadas, seus processos costumam habitar a intersecção entre artes visuais, escrita, dança, teatro e performance. Atua no carnaval de rua e dentro da universidade desenvolve a pesquisa de iniciação científica (CNPq): “Nunca tocar uma coisa só: a desmontagem cênica como prática de cruzo”.