Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper revelou
que, entre 2010 e 2020, a polícia militar de São Paulo enquadrou 31 mil
pessoas pretas e pardas como traficantes em situações similares àquelas
em que brancos foram considerados usuários. [1]
Devido ao poder persistente do racismo, “criminosos” e “malfeitores” são,
no imaginário coletivo, idealizados como pessoas de cor. A prisão, dessa
forma, funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os
indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar
sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais
os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais. Esse é o
trabalho ideológico que a prisão realiza — ela nos livra da responsabilidade de
nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente
com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo
global. (Davis, 2018, p. 15) [2]
Imagine um ator de teatro. Imagine que ele é o protagonista de uma peça que está prestes a estrear no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Imagine que essa peça é nada menos que Romeu e Julieta de William Shakespeare. Pense na altura, cor da pele, dos olhos, a textura do cabelo… Se demore nessa idealização e não se esqueça de imaginar os mínimos detalhes. Pensou? Deixa eu adivinhar… Ele teria a cara do Marcos Camelo?
Na peça “Eu, Romeu”, o ator Marcos Camelo narra sua relação com teatro desde o início da sua formação e os primeiros papéis que sonhava interpretar. Se equilibrando sobre um barril vermelho e batucando miúdo um pandeiro, Camelo nos recebe no teatro cantando “todo menino é um rei/ eu também já fui rei/ mas quá!/ despertei”. Enquanto a música nos fala do amargor de sonhar com um amor que não se alcançou jamais ou de sonhar de mais e não realizar nenhum desses sonhos, o que assistimos em cena pode ser considerado a realização de um sonho de menino. Tal como Romeu, advindo de uma família que jamais poderia se relacionar com a de Julieta, Marcos aparentemente também não estava destinado ao teatro. Nascido em Rocha Miranda, entre o morro do Turco e o morro do Faz Quem Quer, a carreira de ator parecia improvável. No entanto, assim como o Romeu de Shakespeare não aceitou seu destino trágico, o Romeu de Rocha Miranda também recusou o seu.
Ao longo da peça, o ator oscila entre um registro em primeira pessoa, no qual narra sua história pessoal diretamente para o público, e um registro mais introspectivo no qual encarna Romeu e reproduz o texto de Shakespeare, traçando paralelos entre o drama inglês e os desafios experienciados por Marcos enquanto um ator negro tentando construir uma carreira no teatro. A Julieta de Marcos, representada em cena por uma bexiga, é o teatro: seu amor que desafia lugares pré-determinados e papéis estereotipados. Ao passo que ao se dirigir ao público na primeira pessoa, Camelo reflete sobre o racismo estrutural que atravessa sua vida pessoal e sua carreira – os papéis que lhe são oferecidos e a falta de protagonismo desses papéis em cena –, quando encarna Romeu, recitando o texto como no livro, a dimensão preocupada com a temática do racismo é deixada momentaneamente de lado.
As cenas nas quais Camelo narra episódios de racismo no cotidiano, sem esmorecer nem perder o humor, são ágeis e nos cativam enquanto público. As cenas de Romeu operam como intervalos na eletricidade transmitida no registro em primeira pessoa. Me interessaria mais, na qualidade de espectadora, assistir a um aprofundamento dos relatos e a uma radicalização no texto shakespeariano, de forma a se lançar mais na subversão não só dos papéis predestinados, mas também na forma com a qual esses personagens se apresentam. É certo que, em dado momento, Camelo explode em questões contra o texto shakespeariano com indagações, como por exemplo, acerca do fato de Julieta precisar de um marido para se curar da depressão. No entanto, não é desenvolvido o porquê nós precisamos hoje de um Romeu. Afinal, por que ser Romeu é importante? O que justifica a atualização desse personagem para o nosso contexto? De que forma ser Romeu contribui para a construção de uma identidade brasileira negra?
Abdias do Nascimento, ao propor seu projeto de Teatro Experimental do Negro, tinha como objetivo não apenas trazer corpos negros para o palco, mas que esses corpos narrassem a história da cultura e manifestações artísticas das gentes negras. Portanto, tratava-se de um teatro que não se restringia a denunciar o racismo, mas buscava mecanismos para a construção de imaginários alternativos àqueles oferecidos pelos papéis caricatos, empobrecidos e pejorativos que eram destinados às pessoas negras.
Eu, Romeu traz visibilidade para aqueles que “vieram de lá pequenininhos”, sem família ou sobrenome importante, desafiaram o destino trágico que fora reservado para eles e realizaram seus sonhos. Camelo, ao cabo da peça, nos convida a construir um mundo em que a gente possa ser a gente por inteiro independente das nossas cores e origens. Ele, Romeu e a gente, quem quisermos ser. Meu convite é para que não apenas mudemos as cores de quem interpreta Romeu – o que no atual sistema de representações racistas, já é muito! –, mas que a gente antropofagize de fato esse personagem e transforme seu sentido histórico. Lanço um convite para que a gente vá além da tradução e transposição do texto inglês para a nossa realidade, mas que sejamos capazes de pretuguesar Shakespeare até que ele caiba de fato em nossas bocas. Para além de desejar ocupar lugares destinados à branquitude, que não nos falte força e coragem para criar nossos próprios espaços e sonhar novas histórias!
ESTE É UM ESPETÁCULO DA ADORÁVEL COMPANHIA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pm-sp-enquadra-negros-como-traficantes-e-brancos-com-o-mesmo-volume-de-drogas-como-usuarios-diz-pesquisa/
[2] DAVIS. Angela. Estarão as prisões obsoletas?;Tradução de Marina Vargas. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2018.

Filósofa, crítica de teatro e pesquisadora em feminismos e saberes decoloniais, Annelise Schwarcz é licenciada em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e mestra em Filosofia pela mesma instituição na linha de estética. Atualmente é doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro pela linha de gênero, raça e colonialidade. É também cofundadora do COGA.Lab, onde ministra ciclos de leitura e oficinas de escrita.