TEATRO E TRADIÇÃO | Por Heder Braga

A Cia de Arte Popular celebra seu 27º aniversário com a circulação de O Brincado Romance de Flora e Valentin, este espetáculo destinado ao público infanto juvenil que explora a rica tapeçaria da cultura popular brasileira por meio de narrativas, canções e encenação. A circulação iniciou em São João do Meriti e passa por mais oito unidades do SESC através do edital SESC Pulsar.

Narrada em tom poético, com direção de Marcos Covasck, o espetáculo explora uma saga repleta de elementos folclóricos, como cantigas, lendas, e rimas. A narrativa central gira em torno dos personagens Flora e Valentin, que conduzem o público através de uma viagem imaginativa rica em simbolismo e valores tradicionais. A peça não se prende a uma busca pela verossimilhança; ao invés disso, abraça o fabuloso, desafiando a percepção do tempo e questionando as barreiras etárias através de sua escolha de elenco e temas universais.

O espetáculo apresenta um mix de linguagens artísticas, desde o teatro de bonecos até elementos de percussão, evocando um ambiente que ressoa com a estética artesanal. A manipulação de fantoches, como o personagem Coisa Ruim e a Sereia Iara, contribui para uma narrativa visualmente rica, que tem no cenário de dobraduras de papel em formato de barquinhos um forte elemento.

Um coletivo de cinco atores e um músico, faz a interação entre personagens arquetípicos – como o vilão (Pedro Lages), a velha (Eve Penha), os mocinhos (Nancy Calixto e Cesário Candhí), e o arlequim (Francisco Farnum) – de forma quase didática, utilizando-se de características marcantes e facilmente reconhecíveis. Esta abordagem lembra as tradições da commedia dell’arte, onde o exagero tipológico serve como uma ferramenta eficaz para comunicar mensagens claras ao público.

O cenário, de estética artesanal e detalhes feitos à mão, complementa a intenção de resgate das culturas populares brasileiras. Essa escolha é um tributo à manualidade e à tradição do fazer artístico, em contraste com a produção teatral contemporânea frequentemente marcada pela tecnologia.

O figurino, apesar de flertar com a atemporalidade, carrega signos emblemáticos de épocas passadas, como o uso de uma espécie de escudo medieval utilizado pelo protagonista, coletes e calças com bufante que pode ser visto como um convite a um diálogo entre o passado e o presente. Essa dualidade presente no design sugere uma reflexão sobre o tempo, uma convivência harmoniosa entre o antigo e o moderno.

A trilha sonora é um elemento fundamental na construção do espetáculo, permeada por músicas do imaginário popular brasileiro, como “Alecrim Dourado” de autor desconhecido, “Peixinhos do Mar” de Hélio Ziskind, além de composições originais de Beto Gaspari que assina a direção musical do espetáculo. Executadas em solos e em coros, as músicas promovem uma imersão do público na sonoridade de manifestações populares do Brasil, evocam memórias afetivas e estabelecem uma conexão imediata com a audiência. A presença de canções conhecidas enriquece a experiência teatral, funcionando como uma ponte cultural que transcende gerações e aproxima o espectador das raízes culturais representadas no palco. A música não é apenas um complemento à ação, mas um componente narrativo que participa ativamente da construção da história.

A escolha de trazer artistas 50+ no palco como protagonistas, interpretando crianças, merece atenção especial, na medida em que desafia a lógica etarista que frequentemente domina o cenário artístico e propõe uma nova dinâmica entre experiência e juventude, promovendo um espaço inclusivo para artistas de todas as idades. Ao evitar discutir explicitamente a questão etária, a produção oferece uma visão atemporal, destacando a universalidade da arte e seu poder de atravessar as barreiras do tempo.

A dramaturgia de “O Brincado Romance de Flora e Valentin” – rica em elementos que colhem a atenção do público, tanto infantil como adulto, fazendo uso de um jogo teatral que resgata expressões culturais, artísticas, dos costumes e das tradições orais de histórias transmitidas através de gerações – reafirma o papel do teatro como um espaço de preservação cultural. A peça se destaca por sua habilidade em combinar diferentes formas de expressão artística para criar uma experiência que dialoga com o imaginário popular de forma divertida e graciosa.

Ao unir elementos tradicionais e contemporâneos, a produção não apenas entretém, mas também educa, inspirando novas gerações a valorizar e perpetuar o rico patrimônio cultural do Brasil. A Cia de Arte Popular, de Duque de Caxias, com sua abordagem e comprometimento, reafirma seu papel como um pilar significativo no cenário teatral nacional.

“Seguir o caminho do rio do meu coração” é mais do que uma simples linha de diálogo na peça; é uma ode ao fluxo incessante da vida e da cultura, que nos convida a mergulhar profundamente em nossas raízes e emoções. A Cia de Arte Popular tece uma tapeçaria rica de sentimentos e tradições, onde as passagens da peça alimentam esse rio de afetos. É uma jornada que desafia as barreiras do tempo, convidando-nos a encontrar nossa própria rota nas águas do coração, onde a cultura popular ressoa como um murmúrio eterno, guiando-nos para um destino onde a arte é o rio que nos une. A produção nos ensina que seguir o coração é mais do que navegar em águas conhecidas; é abraçar o desconhecido com esperança e um profundo senso de pertencimento.

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Ator, diretor e produtor teatral, é doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, onde também se graduou em Estética e Teoria do Teatro, e Mestre em Estudos de Teatro pela Universidade do Porto, integra a equipe do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana. Sua trajetória inclui colaborações com profissionais como Ricardo Kosovski, Ivan Sugahara, Diego Morais, Pedro Kosovski, Isaac Bernat, Lázaro Ramos, Daniel Herz, Renato Rocha, André Matos e Bibi Ferreira. Destaca-se também como pesquisador na área de teatro para a infância.

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