ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ
“O ‘nós’ é muito mais forte e bonito do que o ‘eu'”
Sotigui Kouyaté
Saí do Teatro Sylvio Monteiro, na quarta-feira, 22/10/2025, com a sensação de um descolamento entre o propósito do “espetáculo” que se dava ali e o que, de fato, ali se dava. Havia um desencaixe. Dormi o incômodo e acordei com uma possível resposta: Nyogolon – expressão que conheci pelo ofó de Sotigui Kouyaté – é um lugar. Um lugar de escuta e compartilhamento que obedece à lógica cosmogônica africana; lugar no qual não há a relação “aquele que faz-aquele que assiste”. Na tradição africana, esta palavra é também aplicada às práticas a que nós (de pensamento colonizado pela Europa) chamamos teatro. Contudo, a relação com essas práticas, em África, não se dá pela mesma via. Segundo Isaac Bernart (2013), em seu livro sobre o griot, “os atores prepararam algo para oferecer ao público, mas sem que haja qualquer tipo de fronteira. São todos seres humanos compartilhando um momento único e efêmero” (p. 78). Ele segue:
A busca pelo outro é tão importante (…) que nas contações públicas a luz da plateia jamais é apagada, pois é para aquelas pessoas que aquela história é contada, por isto é preciso vê-las, senti-las. Esta comunicação possibilita inclusive que o contador possa fazer tanto pequenas alterações como mudanças mais radicais. (Idem. Ibidem.)
Nyogolon é, então, um modo relacional que se dá em um espaço e, ao mesmo tempo, por emprestar sentido ao espaço, o constitui enquanto lugar – o espaço vivenciado. Em concordância com isto, Nyogolon, “espetáculo” do Grupo Artesão Teatro, não parece querer ser um espetáculo, mas, um lugar. Temos aí a possível razão do desencaixe – e a razão pela qual, neste texto, utilizarei aspas quando me referir à realização como espetáculo.
Sabemos que para alguns grupos ocupar determinados espaços hegemônicos é um passo decisivo na legitimação de sua prática, contudo, há de se observar a natureza da obra – se é que isso existe. O edifício teatral é, a seu modo, domesticador. Sobretudo se o uso de seus componentes (hall-sala de espetáculo / palco-plateia / iluminado-escurecido etc.) remontam à tradição colonialista, hierárquica, eurocentrada que exige certa etiqueta para a experiência na sala (silêncio, atenção, manter-se sentado…). O edifício teatral é um discurso de poder sobre o qual é preciso refletir e com o qual é preciso negociar quando vamos entrar em relação com ele. O encontro, como compreendido pela prática africana, não se concretiza nesse espaço teatral colonial. Ou seja, é preciso uma operação consciente de manipulação daquele espaço para transformá-lo em Nyogolon. A ideia romântica de que o edifício teatral é o espaço de todas as práticas que se afirmem teatrais entra em crise diante de realizações que não se encaixam nas normas estabelecidas de domesticação e controle, “espetáculos” como Nyogolon, onde “pessoas de corpo presente se encontram para compartilhar a vida e parte de suas histórias”, como consta no programa.
Isso me faz perguntar: ocorrendo em um outro espaço, o “espetáculo” contaria com aquele público (em tamanho e formação), que lotava o teatro no centro de Nova Iguaçu? Pergunto sabendo que este projeto, viabilizado pela Política Nacional Aldir Blanc, realizou uma sessão no dia 19/10/25 no Ilè Asé Omi T’oju Oyo (Axé Cacuia), em Magé. Gostaria de ter visto essa sessão para, talvez, ter menos perguntas do que as que aqui disponho. Supondo que, assim, o “espetáculo” ganhe uma dimensão mais direta – ligada, talvez, à performance – em que, inclusive, eventuais fragilidades técnicas, que se evidenciam quando estamos diante da categoria espetáculo, se reconfigurariam como qualidades, posto que, nesta (outra) proposição, tais fragilidades apareceriam como dados da vida e a vida, por sua vez, como valor constituinte da obra, como potência, discurso, considerando, como Deleuze e Parnet (1998), que:
há na vida uma espécie de falta de jeito, de fragilidade da saúde, de constituição fraca, de gagueira vital que é o charme de alguém. O charme, fonte de vida, como o estilo, fonte de escrever. A vida não é sua história; aqueles que não têm charme não têm vida, são como mortos. Só que o charme não é de modo algum a pessoa. É o que faz apreender as pessoas como combinações, e sortes únicas que determinada combinação tenha sido tirada. É um lance de dados necessariamente vencedor (…). Por isso, através de cada combinação frágil é uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança ímpar no ser. (p. 5)
Segundo consta no programa, o “espetáculo” nasce de um sonho (daqueles que se tem ao dormir) do seu diretor, Jonyjarp Pontes, “após voltar de sua viagem de pesquisa ao Chile, onde experimentou uma vivência com Thomas Richard sobre cânticos afro-caribenhos”. Richard é um dos diretores do Workcenter, centro de pesquisa fundado pelo polonês Jerzy Grotowski, em 1986, e que segue em atividade sob a regência de Richard e Mario Biagini. De acordo com a pesquisadora Tatiana Motta Lima (2013), o citado trabalho sobre os cânticos foi desenvolvido, por Grotowski, numa etapa da pesquisa em que se evidencia um “deslizamento entre os campos da arte e da espiritualidade” (p. 221) ao mesmo tempo em que ressalta que “ainda que possa parecer paradoxal, a questão da espiritualidade foi, para ele, uma questão terrena e corpórea” (Idem. Ibidem.), citando Biagini para explicar a prática:
No Workcenter, a arte é veículo de um trabalho sobre si: o itinerário é aquele de uma possível transformação pessoal. Transformação não no sentido teatral (um ator que transforma seu comportamento cotidiano no comportamento de um personagem); em vez disso, transformação na qualidade de habitar no mundo de ser humano, entre outros seres humanos. Acontece internamente, mas está em relação direta com o que ocorre externamente. O trabalho sobre os cantos e sobre as Actions criadas com os cantos podem permitir que o atuante encontre o espaço para a transformação de qualidade na própria presença: na percepção do mundo e de si mesmo no mundo. (Idem. p. 222).
Bebendo desta fonte, Pontes iniciou, em 2019, uma pesquisa que se desenvolveu a partir da memória dos atores (Aryelle Cristine, Junior Capelloni, Karla Muniz, Layra Guimarães, Matheus Marins, Pamella Almeida e Rômulo Muralha) que tocavam, invariavelmente, na questão da espiritualidade de matriz africana. Fato que inscreve o “espetáculo”, composto por uma sucessão de depoimentos/relatos/confissões em primeira pessoa, dentro de um movimento político insurgente de afirmação de uma identidade territorial – reside aqui, ao meu ver, o sentido mais importante de Nyogolon.
“De acordo com o pesquisador José Beniste (2019), “é nessa extensa região [da Baixada Fluminense] que se instalou o maior núcleo de Terreiros de Umbanda e Candomblé, provavelmente, de todo o Brasil” (p. 138). Assim, trazer as memórias de jovens atores ligados às/pelas religiões de matriz africanas é um importante movimento historiográfico que resgata corpos e memórias apagados e os lança para o futuro. Na expressão de Leda Maria Martins, “o tempo bailarina” e se espraia para todos os lados em movimentos espiralares imparáveis.
Em suma, é importante afirmar que existe um teatro político acontecendo na Baixada Fluminense. Político em termos amplos. Nyogolon é um exemplo desta constatação, que questiona (talvez sem o saber) a própria estrutura do acontecimento teatral. Poderemos pensar as realizações considerando o espaço justo para que seu discurso e/ou propósito se dê plenamente? Teremos outros espaços? E o público irá? A saber.
ESTE É UM ESPETÁCULO DO GRUPO ARTESÃO DE TEATRO
_______________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS:
BENISTE, José. História dos candomblés do Rio de Janeiro: o encontro africano com o Rio e os personagens que construíram sua história religiosa. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand, 2019.
BERNAT, Isaac. Encontros com o griot Sotigui Kouyaté. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. Disponível em: Deleuze_e_Claire_Parnet_-Diálogos-1.pdf
LIMA, Tatiana Motta. “Cantem, pode acontecer alguma coisa”: em torno dos cantos e do cantar nas investigações do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 220-240, jan./abr. 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/1769