A JORNADA DE UM HERÓI | Por Celso Guimarães Júnior

No material de divulgação de “A Jornada de um Herói”, da Cia Atores da Fábrica, o diretor Alexandre Gomes e o ator/dramaturgo Mateus Amorim falam de suas referências para a criação do espetáculo e do objetivo de aproximar o plano da fábula do espaço e do tempo atual à realidade do espectador. Para o grupo, o objetivo da montagem era abordar o trabalhador comum como herói e sua jornada cotidiana como um grande desafio. E acrescentam a isso a motivação de valorizar as narrativas das áreas periféricas: “Quando se mora nestes locais, poucas são as vezes que se consegue identificação positiva com alguma forma narrativa, uma vez que o pensamento hegemônico é que moradores dessa parte do estado não têm histórias ou cotidianos interessantes.”

O ator nos recebe na entrada da sala de espetáculo. Muito cordial e faceiro, brinca com a plateia, em uma performance que evidencia seu estado de presença e prontidão, um estado de alerta típico de trabalhos populares na rua. Está atento às possibilidades de provocação que surgem e joga com elas, até que todos se acomodem. Não sabemos se a cena já começou. Estamos diante de um ator que flui entre personagem, narrador e performer.

Mateus conduz a narrativa criando imagens com seu próprio corpo. Cabe a nós um processo criativo também, visto que as imagens se concretizam na nossa imaginação. Como nas melhores contações de história, o narrador convoca nosso ser criativo à construção das cenas que narra; e é em nós que a mágica dessas cenas acontece – sem que percebamos, nossa mente vai criando a história que assimila.

Quando o ator finalmente anuncia que o espetáculo “vai começar”, já estamos imersos no jogo, no espaço e na linguagem do teatro, já nos sentimos confortáveis e parte de um coletivo, pois a espirituosa recepção nos familiariza com a situação e os rostos desconhecidos daquele lugar que se torna nosso espaço comum.

A história percorre os doze passos da jornada do herói José, um homem preto, pobre, favelado e trabalhador de uma fábrica de carvão. O corpo do ator, a luz, os figurinos, os poucos elementos cenográficos se transformam ao longo de todo o espetáculo extraindo novos usos, sentidos e leituras a partir da condução do narrador.

Merece destaque o trabalho da contrarregra Karen Menezes, importante agente cênico em diversos momentos da história, como ocorre, por exemplo, na cena de conflito entre o protagonista e o patrão, presentificado através da voz e da atuação da contrarregra, que compõe tanto a atmosfera das situações como, pela precisão da construção e da execução de suas inserções, valoriza e evidencia a contracena. Embora a direção trate por um solo, há a presença de Karen Menezes em todo espetáculo. Ela torna-se elemento da narrativa como luz, como voz e como personagem em diálogo. Seu trabalho é tanto visual quanto sonoro, além de executar movimentos de luz que contribuem para criação da atmosfera cênica. No desenho de luz sua função narrativa fica evidente quando ela manipula lanternas, como uma atriz e seu títere, como um jogo entre performer e personagem. O diretor, que assina também a direção de movimento e a iluminação, usa apenas a luz geral do teatro, sendo todos os efeitos e jogos de luz e sombra realizados de forma manual, por meio do uso de lanternas, manipuladas pela contrarregra que, como um “ser narrante”, está o tempo todo em movimento técnico, artístico e plástico – que mereceria maior destaque na ficha técnica.

A linguagem, se podemos delimitar assim, de A Jornada de Um Herói e a excelência técnica de sua execução criam um espetáculo instigante, que envolve o espectador e que se baseia nos mais fundamentais elementos da arte cênica contemporânea, como a descentralização da narrativa, a desconstrução da personagem e da unidade dramatúrgica, a diluição da fronteira entre realidade e ficção, a desconstrução da linearidade do drama e da fronteira entre palco e plateia.


Celso Guimarães Júnior é ator, dramaturgo, performer e, principalmente, entusiasta do teatro! Estuda Estética e Teoria do Teatro na Unirio e se aventuro a escrever sobre espetáculos que de alguma forma o atravessam com o intuito de aprender mais sobre teatro.

Outras Críticas