Em abril de 2018, a CIA. CERNE, reconhecido grupo de teatro da Baixada Fluminense, trouxe aos palcos cariocas uma adaptação da obra ERA UMA VEZ UM TIRANO, de Ana Maria Machado. Sob a direção de Vinícius Baião e com supervisão de Marco dos Anjos, o espetáculo explora temas políticos e sociais que refletem a crise vivida no Brasil, abordando questões de poder, censura e resistência em uma produção voltada para o público infantil e juvenil. Em 2023, a montagem foi premiada no CBTIJ de Teatro para Crianças, conquistando os troféus de Melhor Ator Protagonista e Visagismo, ambos para Higor Nery. No ano anterior, em 2022, o trabalho contínuo da Cia. Cerne foi reconhecido com o Prêmio Especial pela “pesquisa de linguagem que aborda questões políticas e artísticas na criação de espetáculos para crianças”.
O espetáculo incorpora elementos característicos da comédia de costumes, um gênero que busca, através do humor, realizar uma crítica social. Esse tipo de comédia utiliza-se de situações cotidianas e comportamentos típicos de determinados grupos ou classes sociais para expor, de maneira satírica, suas contradições, vícios e valores, promovendo uma reflexão crítica, inserindo-se no teatro político como um espaço necessário de fricção e reflexão. O uso de metáforas e imagens impactantes, como as frases “enlataram os sonhos” e “nossa flor vai desbancar o medo” abre caminho para possíveis reflexões e colocam de algum modo as crianças, protagonistas da narrativa, no centro da ação e da resistência. Totonho, Bebel e Jacira, as três crianças que se erguem contra o regime tirânico, funcionam como símbolos de um futuro possível, o que remete à concepção de Walter Benjamin sobre a infância como um terreno fértil de transformação social.
A apresentação de uma companhia da Baixada Fluminense no Teatro Municipal Café Pequeno, no Leblon, vai além de um simples ato artístico: é um símbolo potente das divisões sociais e econômicas que fragmentam o Rio de Janeiro. O contraste entre a origem periférica dos artistas e o público privilegiado da Zona Sul evidencia a desigualdade de oportunidades que permeia a cidade.
Ocupando um espaço muitas vezes reservado a produções do eixo Zona Sul-Centro, A Cia. Cerne atravessa fronteiras invisíveis e convida à reflexão sobre a territorialidade e segregação. Ao unir realidades tão distintas, o espetáculo rompe barreiras, questiona preconceitos e reafirma o poder transformador da arte em abrir diálogos e repensar a cidade como um espaço verdadeiramente compartilhado.
A visualidade do espetáculo merece destaque. Com forte inspiração na estética dos desenhos animados, os figurinos e adereços, assinados por Higor Nery e Leandro Fazolla, criam uma atmosfera lúdica e ao mesmo tempo crítica. A peruca do Tirano, feita com rolos de papel higiênico, e os fantoches de materiais recicláveis ressignificam o uso de objetos cotidianos, conferindo um caráter artesanal e provocador, aproximando-se das reflexões de Augusto Boal sobre o Teatro do Oprimido, ao estimular uma dramaturgia que é ao mesmo tempo popular e profundamente engajada.
O cenário, concebido por Leandro Fazolla, acompanha essa estética transformadora, com cores que se apagam e escurecem à medida que o tirano impõe seu regime opressor, mas que voltam a brilhar ao final, simbolizando a vitória da liberdade e da alegria. Tal estratégia visual reforça o caráter dialético do espetáculo, permitindo que o público se envolva em um jogo de tensões que se resolve não apenas na narrativa, mas também no espaço cênico.
A trilha sonora original, composta por Beto Gaspari, dialoga com clássicos do cancioneiro infantil, como a canção “Se Essa Rua Fosse Minha”. A combinação de melodias nostálgicas e músicas inéditas cria um ambiente sonoro que ora embala, ora desafia a plateia a refletir. O uso da canção popular, em especial, revela a força de uma memória coletiva que se contrapõe ao regime tirânico da peça.
A direção de movimento, com a preparação corporal de Marcio Paulo Vasconcellos, também contribui para a construção de imagens potentes e metafóricas, que reforçam o caráter simbólico da narrativa. O elenco, formado por Cesário Candhí, Cláudia Macedo, Gabriela Estolano, Higor Nery, Elizândra Souza e Leandro Fazolla demonstra versatilidade e precisão, transitando entre múltiplos personagens e funções, em um trabalho coletivo de muita qualidade. A forma como os atores se conectam com a plateia, especialmente as crianças, reflete uma prática teatral voltada para a criação de um espaço dialógico, onde o público não é mero espectador, mas cúmplice na construção do significado.
No campo da iluminação, Ana Luzia de Simoni explora com sensibilidade as mudanças de humor e atmosfera, guiando a narrativa através de jogos de luz e sombra que complementam a proposta dramatúrgica. Seu trabalho cria universos imagéticos que, somados ao figurino e à cenografia, potencializam o impacto das metáforas presentes no texto.
Ao longo do espetáculo, o espectador é confrontado com questões de poder, resistência e cidadania, mas tudo isso através de uma linguagem acessível e lúdica, que nunca subestima a inteligência do público infantil. Essa abordagem está em sintonia com a ideia de que o teatro para crianças pode — e deve — ser um espaço de formação crítica, como defende Peter Brook, que afirma que o teatro é uma forma de conhecimento e, portanto, uma forma de educação.
“Era uma vez um Tirano” é como um conto urgente para os dias de tempestade. Com cenários que dançam aos olhos e uma trama que fala direto ao coração, a Cia. Cerne urde um teatro que vai além do encanto. É um convite sutil, onde cada gesto e palavra desenham perguntas sobre o destino de todos nós. No palco, a magia e a crítica se entrelaçam, lembrando que o teatro, em sua essência, é uma faísca capaz de iluminar caminhos, provocar mudanças e despertar sonhos em tempos de escuridão.
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Ator, diretor e produtor teatral, é doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, onde também se graduou em Estética e Teoria do Teatro, e Mestre em Estudos de Teatro pela Universidade do Porto, integra a equipe do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana. Sua trajetória inclui colaborações com profissionais como Ricardo Kosovski, Ivan Sugahara, Diego Morais, Pedro Kosovski, Isaac Bernat, Lázaro Ramos, Daniel Herz, Renato Rocha, André Matos e Bibi Ferreira. Destaca-se também como pesquisador na área de teatro para a infância.