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Em 2025, a Cia de Arte Popular comemora seu percurso artístico com a estreia “De Repente 27”, uma celebração de sua própria trajetória e da produção artística da cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, região periférica do estado do Rio de Janeiro. Fundada em 1997, a companhia é hoje uma das mais longevas na região e a maioria de seus integrantes – Beto Gaspari, Cesário Candhí, Eve Penha, Francisco Farnum, Nancy Calixto e Pedro Lages – tem mais de 50 anos de idade. Com produção e circulação contínuas, sua pesquisa cênica baseada na cultura popular gerou quinze espetáculos e lhe valeu o Prêmio Culturas Populares – Edição Selma do Coco (Minc – 2018).
“De Repente 27” mergulha na linguagem do teatro documentário de forma crítica, criando relações entre o passado e o presente, abrindo uma espécie de relicário, com histórias que deflagram as dificuldades de produzir artisticamente na Baixada Fluminense e também dos seus modos de existir. A dramaturgia traça com sensibilidade um caminho pelo tempo, rememorando as criações do grupo, seus processos e táticas de sobrevivência, usando o humor como recurso de alívio e evitando o panfletarismo. As críticas se apresentam em cada história contada, mas cabe ao espectador se indignar e reconhecer o que é um problema social e político no impacto do fazer cultural, a começar pelo estopim da obra: como fazer o teatro deste grupo hoje? A companhia, fortemente ligada à cultura popular, satiriza os aspectos do teatro contemporâneo, enquanto busca entender como, aos cinquenta e tantos anos e mais, podem se encaixar neste gênero. A cada tentativa de marcar um elemento do “checklist do teatro contemporâneo” composto por itens como presença de um microfone, utilização de projeção, depoimentos pessoais, entre outros, os atores rememoram suas histórias coletivas e pessoais. Entre os relatos, é possível encontrar figuras notáveis para a formação de artistas e grupos de Duque de Caxias e identificar realidades que são comuns à periferia independentemente do tempo histórico. Dos seis atores em cena, cinco deles têm sua iniciação artística relacionada a Ediélio Mendonça, personalidade fundamental na formação cultural de diversos artistas da região. Ao criar uma árvore “edieliológica”, o espetáculo brinca com a projeção mapeada, mesmo que de maneira simples, apresentando de forma iconográfica o retrato de um período efervescente em Caxias, entre as décadas de 60 e 80. Ao trazer nomes e imagens como a de Ediélio, o grupo torna palpável uma história que, hoje, sobrevive apenas na memória das pessoas.
O grupo foi fundado por servidores da categoria funcional animadores culturais, em escolas da rede estadual do Rio de Janeiro, cargo da esfera pública que, em 2025, corre o risco de ser extinto. Os animadores culturais estão diretamente relacionados ao trabalho com a comunidade, desenvolvendo a produção de projetos artísticos de linguagens como teatro, dança, música, artes plásticas, entre outros. Ao trazerem para a cena suas trajetórias formativas e os desafios de se produzir arte de forma continuada por mais de 25 anos, o engajamento dos atores contribuem para momentos de identificação e catarse junto ao público.
Há no espetáculo o que se diz e, ainda mais potente, o que se vê. Os corpos contam as histórias. Eve Penha, uma atriz negra, com mais de 60 anos, conta sobre ter se formado em teatro em um curso por correspondência. Ela conta que aprendeu a ler em casa, com os pais, e que só foi para a escola aos nove anos. Ouvia novelas de rádio e um dia disse para a mãe: eu quero fazer isso. Em certa ocasião, a mãe lhe disse: você não vai conseguir, olha a nossa cor. E o pai, que trabalhava como pedreiro, contrapôs: deixa minha filha sonhar. “E eu sonhei, sonhei alto, e é por isso que estou aqui hoje, contando esse sonho pra vocês”. Nancy Calixto relata que, quando criança, a empresa onde seu pai trabalhava revertia um percentual de seu salário em ingressos para circo e teatro. Suas irmãs mais velhas só podiam sair se a levassem – por isso, todo mês a caçula ia ao teatro. Na adolescência, conhece o grupo Sol a Sol no Teatro Armando Melo e passa a fazer parte da trupe, onde atuavam Eve Penha e Beto Gaspari. Cesário Candhí por sua vez, fala da admiração silenciosa do pai, que contava sobre o filho aos colegas da construção civil e assistia a todos os seus espetáculos.
As diferentes histórias pessoais dos seis atores acabam por criar uma espécie de compêndio com diversas possibilidades de interesse e iniciação no mundo das artes, gerando um delicado processo de reconhecimento na plateia que se identifica e se encontra naquelas histórias tão plurais. As histórias pessoais foram transformadas em texto através de processo regido por Vinicius Baião, que no programa do espetáculo, diz que assiste aos espetáculos da companhia desde criança. Talvez por isso texto e corpo venham à cena para falar do mesmo sonho alimentado na infância. E com certeza é por emergirem da mesma realidade, atores e dramaturgo, que optam por reproduzir o diálogo com um crítico que os assistiu pela primeira vez na cidade do Rio de Janeiro:
— Onde é que vocês estavam esse tempo todo?
— Nós, aqui mesmo. E você, para onde esteve olhando?
A longevidade do grupo é posta em cena por diversas estratégias de direção, que incluem, ainda, a escolha pela trilha sonora. Sendo um grupo que atravessa quase três décadas com seus trabalhos, os espetáculos da Cia de Arte Popular fazem parte do imaginário artístico baixadense, onde é constantemente reverenciada. Assim, parte do seu repertório musical, composto por Beto Gaspari, é amplamente conhecido por artistas e público em geral. Ao escolher utilizar para a trilha sonora de “De Repente 27” – além de algumas canções originais – músicas de outros espetáculos, a Cia de Arte Popular acerta na nostalgia de seu público cativo, criando um laço com aqueles que não apenas reconhecem, mas cantam junto trilhas de peças como “A Incrível Peleja de Simão e a Morte” e “Lixo, no lugar errado, tô fora”, alguns dos espetáculos de maior circulação do coletivo.
Durante o espetáculo, somos alertados sobre o que foi preciso para realizar aquele sonho: “há que se ter coragem e muita fé”, cantam. E o lugar onde estamos reforça esta mensagem: o Gomeia Galpão Criativo, ponto de cultura de gestão coletiva que transformou um galpão no osso em espaço multiuso equipado para comportar teatro, cinema, artes visuais e oficinas. Mas o sonho vive em perigo: prova disso é que, depois de todo o investimento, a iniciativa está ameaçada de despejo. Há que se ter incansável disposição para a luta.
Os registros históricos são fundamentais para a formação de uma identidade cultural. A partir deles é possível identificar padrões, refletir sobre o passado, entender o presente e, sobretudo, vislumbrar um futuro. Ao olhar para a Baixada Fluminense é possível identificar os desafios da historicidade, seja no campo social ou no campo das artes, mesmo com o recente engajamento de estudiosos e pesquisadores em registrar figuras marcantes, movimentos sociais e eventos que impactam a região transformando estruturas sociais, políticas e culturais.
Neste sentido, a arte, sobretudo periférica, vem assumindo um papel importante no resgate, documentação e desvelamento de histórias que colaboram para o entendimento do território e de suas características. Sobretudo na última década, são inúmeros os espetáculos teatrais que se utilizam de recursos da autoficção, biodrama e teatro documentário, explorando suas raízes e olhando criticamente para seus contextos sociais. Entre os trabalhos realizados pelos grupos teatrais da Baixada Fluminense que se dedicam a levar para a cena histórias que permeiam o território, podemos destacar os espetáculos “Joãozinho da Gomeia – De filho do tempo a Rei do Candomblé” (2019), da Cia KarmaCírculus (São João de Meriti), que trata sobre a vida e passagem de um dos babalorixás mais importantes da história do Candomblé no Brasil por Duque de Caxias; “Turmalina 18-50” (2019) e “Três Irmãos”(2023), da Cia Cerne (São João de Meriti), que apresentam duas personalidades que viveram na cidade, respectivamente, João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e Jorge Amado, autor do livro “Seara Vermelha” e outros clássicos da literatura brasileira; e “Jotinha – O menino que brincava com as Palavras” (2021), da Trupe Investigativa Arroto Cênico (Nova Iguaçu), que trata da biografia do cordelista Jota Rodrigues, morador da cidade sede da companhia por algumas décadas. Vale ressaltar que todos estes espetáculos citados tratam de personalidades que migraram para o território, fazendo do solo baixadense sua morada, antes ou depois de se inserirem na história do país a partir de seus feitos.
Ao adentrar nesta importante seara do teatro baixadense dos últimos tempos, a celebração de grandes personalidades que passaram pelo território, a Cia de Arte Popular não apenas se insere neste fenômeno marcante da produção contemporânea local, como ainda inaugura um outro processo significativo para a historicidade da região: se autocelebrar e inserir o próprio grupo como agente local de transformação e merecida homenagem. Ao criar um espetáculo que, ao perpassar a trajetória específica do grupo, gera identificação com muitos artistas da cena (sobretudo os provenientes das periferias), a Cia de Arte Popular dá vazão a famosa máxima do escritor russo Leon Tolstói: falando da própria aldeia, acabam por se tornar universais.
ESTE É UM ESPETÁCULO DA COMPANHIA DE ARTE POPULAR
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