ENTRE ALTOS E BAIXO: TEATRO, MATRIZES AFRICANAS E OUTRAS EQUALIZAÇÕES | Por Marco Serra

“A Baixada não liga segura essa barra
metade formiga, metade cigarra
De dia na briga, de noite na farra”
Sérgio Fonseca

Foi no dia 15 de outubro de 2024, aqui na Baixada Fluminense, que assisti ao espetáculo O voo de Iparum, em ocasião da 26ª edição do Palco Giratório do SESC Caxias. O espetáculo, dirigido por Rodrigo Villas Boas, conta com a excelente dramaturgia de Jessyca Meyreles. A realização é do Teatro Baixo, um coletivo teatral que nasceu, cresceu e se desenvolve na cidade de Nova Iguaçu. Neste emocionante monólogo, o ator Madson Vilela interpreta o garoto em situação de rua chamado Iparum. O menino, que se reconhece como um passarinho, após o falecimento de Nanã, sua matriarca ancestral e protetora, decide fugir de seus algozes, racistas, que colecionam corpos negros em prisões e cemitérios. Inspiro-me na emocionante metáfora do Teatro Baixo e descrevo um pedacinho do tanto que me impregna.

A poética desse menino-passarinho é um canto de dor e liberdade que, inequivocamente, nos remete aos Ìtán nagôs, oriundos das culturas de matrizes africanas, dos terreiros de Candomblé no Brasil (a palavra nagô Ìtán designa não só qualquer tipo de conto, mas também essencialmente, histórias de tempos imemoriais, mitos, recitações, transmitidos oralmente de uma geração a outra). Não por acaso, o Candomblé é meu lugar de pertencimento. Nesse sentido, o espetáculo e sua poética me atravessam e permeiam minha escrita junto à denúncia de abandonos, desigualdades e genocídio da infância preta. É que Iparum reside não só nos terreiros, mas nas ruas e praças das cidades-árvores que habitamos, onde a violência sistêmica e a desigualdade sistemática atentam contra a existência dessa infância-passarinho. Mais ainda, Iparum é o Erê das matrizes africanas; é Ibeji, o Orixá-criança representado pelos gêmeos Taiwó e Kehinde: dois que são um e, neste caso, ambos sendo Madson Vilela.

No livro Xirê epistemológico: roda, ancestralidade, educação (2022), trago uma reflexão sobre o Orixá Ìbejì em diálogo com a contemporaneidade, destaco o seguinte trecho:

Muito já foi dito sobre a relação sincrética entre Ìbejì e os santos gêmeos do
catolicismo, em algumas narrativas são comuns afirmações sobre como o
sincretismo marginalizou nosso sagrado, vilipendiou nossa cultura etc. Não
discordamos, mas consideramos a importância de verificarmos esses
entrecruzos por outro prisma mais escuro, mais retinto e com maior
capacidade de se perceber em resistências. Um bom exemplo vem da
metáfora da antropofagia que ganhou manifestos, estéticas e protagonismos
na centenária Semana de Arte moderna de 1922. Afirmamos, sem pestanejar,
que já “devorávamos”, ao menos um século antes, as culturas que nos eram
impostas. “Regurgitávamos” e transformávamos em “coisa nossa” a cultura e
religiosidade dominantes, na medida em que o próprio colonizador se
tornava incapaz de diferenciar o que era próprio de seus bens culturais e o
que lhe foi ressignificado e enxertado em sobreposições. Embora não seja do
nosso interesse, nesse momento, abordar tais reflexões sobre sincretismos,
vale a pena ressaltar que Taiwó e Kehinde, aqui e em África, são crianças, ao
contrário de Cosme e Damião que eram adultos e, no Brasil do século XVIII,
foram gradativamente “infantilizados”, melhor ainda, foram sendo
“Ibejizados” pela cosmogonia afro-diaspórica (SERRA, 2022, p. 298)

O espetáculo é como um estilingue com objetivo às avessas: voltado ao passarinheiro-caçador, não mais à criança-passarinho. Nos remete a outro Ìtán nagô, aquele em que Exu “matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”, narrativas “antropomórficas” de quem tá se devorando e comendo de tudo pra se conservar vivo. Trazer nossas memórias ancestrais para cena teatral é um ato político, uma estratégia que Iparum também utiliza pra sobreviver.

O espetáculo confronta os algozes da infância a partir das potencialidades das memórias ancestrais afro-brasileiras, fortalecendo raizes: pessoais e de territórios-árvores; equalizando as disparidades raciais impostas ao menino, às infâncias negras, mesmo antes dele nascer. Uma equalização que permanece entre altos e baixos, fluxos e refluxos, perdas e abandonos, definitivamente não nos parece de bom tom. Iparum também percebe essa disparidade. Daí, na violenta ausência de equidade e na necessidade de sobrevivência, o menino-passarinho recorre, emocionantemente, à figura de sua ancestralidade matriarcal e protetora: Nanã.

As variações e narrativas do espetáculo são encantadoras. Nanã oscila entre vozes e mamulengo; miniaturas, cantos e fragmentos de memória. O jovem Vilela-griot nos ajuda a planar em suas histórias, segredando seus desejos e emoções, sensivelmente necessários, elevados a exposição e à enésima potência da cena. Vilela-griot, esse ator-rapsodo, bem poderia, em havendo real necessidade, equalizar (também) os registros vocais de sua personagem-erê. O fôlego nos é retirado durante todo o espetáculo, desde a gestação de Iparum até o canto do cativeiro que acabou. Lindeza. Mas são nos altos e baixos que, oportunamente, nos encontramos em movimento; em idas, vindas e permanências também, por que não? Dizia o poeta Sérgio Sampaio: “os acordes dissonantes, estão na raiz”. Equalizar esses belíssimos movimentos vocais, entre o rapsodo e o erê, provavelmente, preencherá nosso tempo de voo com as paisagens imagéticas que o espetáculo nos proporciona, possibilitando-nos planar juntinhos com tantas belezas oferendadas. Sem pressa.

Inicio estas breves linhas com uma epígrafe do poeta, compositor, sambista e professor Sérgio Fonseca, da Baixada Fluminense. Na verdade, quando comecei a enveredar nessa escrita, me veio em mente a fala de outro amigo que, certa feita, refletiu em tom bem sério: “na capital [Rio de Janeiro] os artistas, em sua maioria, vêm da classe média/alta, na Baixada é o oposto: aqui, nós que já somos pobres e periféricos, temos artistas que emergem da periferia, da periferia”.

Teatro Baixo, obrigado por voar. Obrigado por existirem e resistirem. Voaremos.

ESTE É UM ESPETÁCULO DO TEATRO BAIXO

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Marco Serra é ator, performer e professor de artes cênicas, formado pela UNIRIO. Pesquisador e doutor em Educação pela UERJ

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