ERA MAIS UMA VEZ UM TIRANO | Por Celso Guimarães Júnior (com a colaboração de Rosyane Trotta)

Um teatro para crianças pode ser político? Um teatro cuja linguagem se serve de muitas cores, formas lúdicas, fabulação, música, pode pretender politizar? A CIA. CERNE, que há dez anos se dedica à criação e produção de um teatro que reflita sobre questões sociais do país, vem apostando que é possível juntar ludicidade e política e afirma ter como objetivo “fomentar a discussão sobre as possibilidades de um fazer teatral direcionado a crianças e adolescentes que toque, de maneira lúdica, em questões sociopolíticas”.

Para alguns autores, o teatro tem por si mesmo caráter político, uma vez que reúne um grupo formado por cidadãos que partilham o mesmo tempo histórico e o mesmo espaço geográfico para ver um recorte do humano, ou seja, para ver a si mesmo. Por outro lado, estudos sobre a pós-modernidade têm considerado que desde a Revolução Industrial a História inaugura um período de declínio de homem público e que o teatro realizado em uma sala fechada, onde cada espectador está em silêncio e sem comunicação com os demais, se distancia do político.

O espetáculo ERA UMA VEZ UM TIRANO, baseado na obra homônima de Ana Maria Machado, se lança ao objetivo de apresentar à criança alguns dos muitos comportamentos humanos que atuam em sociedade como caracteres políticos. A obra vem circulando pela cidade e pelos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Santa Catarina desde sua estreia, em 2018. A apresentação a que assisti se realizou no Teatro Municipal Café Pequeno, na Zona Sul do Rio de Janeiro, na manhã de um dia de semana, para um público numeroso composto de alunos de escolas da região. A surpresa de encontrar o teatro lotado em horário não usual me fez pensar sobre a sub-ocupação das nossas salas e sobre um público potencial que está fora daquele microcosmo que associa teatro e bar.

A maioria dos atores e atrizes alterna dois personagens inteiramente diferentes. Leandro Fazolla começa como um idoso e depois faz uma criança; Higor Nery interpreta o humilde padeiro antes de animar o Tirano; Gabriela Estolano e Elizândra Souza iniciam como as cômicas e pacatas Tia Sucata e Dona Traquitana antes de entrarem como as crianças que mudam a cidade, personagens quase opostos do ponto de vista da função dramática, da corporeidade e da caracterização. É possível ler estes personagens como um caráter social, a começar por seus nomes: Claudia Macedo faz a Moça da Janela, que vem de uma cidade triste e cinza, e Cesário Candhí interpreta o Lambe-Botas, o encarregado de cumprir as ordens do tirano. Independentemente de posição social, todos os personagens recebem expressivo tratamento visual, com figurinos e adereços de muito colorido, formas exuberantes e inventividade que valorizam a artesania.

Como todo tirano, Tirano pensa que, por ser o cidadão mais forte de seu lugar, pode comandar as pessoas ao seu redor. De uma hora para outra, o caminho entre as ideias e sua realização deixa de passar pela coletividade e ser destinado ao benefício da maioria. Quando a tirania toma o poder, a população é submetida a outro modo de existência: no regime autocrático, o personagem Lambe-Botas serve de instrumento de coerção estatal. Obviamente as crianças da plateia perdem o apreço e o afeto pelo autoritário que traz a opressão e a violência, que vai retirando os direitos e alegrias dos seus conterrâneos em prol de um olhar desenvolvimentista e produtivista.

A história de Ana Maria Machado, pela narrativa fabular, propõe uma alegoria metafórica para fazer pensar sobre a sociedade de seu tempo. O diretor e dramaturgo Vinicius Baião mais uma vez se mostra um estudioso das ideias e propostas de Bertolt Brecht, para quem a estrutura fabular era um eficiente modelo para tratar da realidade social. Talvez a criança não conheça nenhum tirano de representação política nacional, mas poderá identificar a tirania no comportamento humano. A aposta da Cia Cerne parece ser a de que, na recriação cênica da forma fabular, o caráter se converta em uma lição apoiada na ética em lugar da moralidade.

Quando o público entra na sala, uma neblina de fumaça cênica já envolve o palco e torna mais aparentes as luzes, como estruturas cênicas flutuantes. Como no teatro épico brechtiano, o palco se mostra desnudo e sem bambolina (dispositivo que oculta o urdimento), revelando a estrutura técnica do teatro. A neblina, com o vazio da cena e a sonorização, produz uma atmosfera de suspensão e anunciação.

Assim como os atores se transformam em personagens diferentes pela caracterização física, também o cenário se transforma: no começo da história, quando reina a alegria, a liberdade e o coletivismo, os elementos têm cores vibrantes; quando a opressão e o isolamento se instauram, as cores se tornam acinzentadas, materializando na visualidade a ação dramática e o estado de ânimo dos personagens e da comunidade.

O desenho sonoro do espetáculo acompanha a trama e o público pode apreciar o trabalho do músico Beto Gaspari, que permanece durante todo o espetáculo na extremidade da área cênica, executa ao vivo a trilha e, em sua interação, se torna um agente da cena. As músicas também exercem função dupla – ao mesmo tempo em que contribuem para o envolvimento do espectador, animam a cena com o clima da situação enquanto as letras contam a história. Um apito que fere os ouvidos do público marca as entradas em cena da violência e da violação de direitos.

A história começa com a chegada de uma personagem estrangeira, a Moça da Janela, cuja caracterização se distingue das demais: ela veste preto e cinza e carrega retração e peso na postura corporal. Na comunidade, onde tudo é permitido, alegre e coletivo, há colorido nas roupas, nos adereços, nas casas. À medida em que a estrangeira vai sendo inserida na comunidade e em seus costumes, ela vai ganhando acessórios novos, ampliando suas cores e movimentos corporais. Este trecho inicial tem a função de inserir na dramaturgia, como personagem invisível e protagonista da história, a coletividade: é o modo de existência e de relação da coletividade que envolve e transforma a estrangeira sem que esta persuasão se dê pela ação de nenhum personagem em particular.

Aspecto importante a se destacar é que todo esse trecho inicial do espetáculo foi criado pelo grupo, cujas contribuições à obra original foram tão abundantes que motivaram a autora Ana Maria Machado a compartilhar com ele os direitos autorais (gesto raro e significativo de abordagem socializante da propriedade intelectual).

Depois que a tirania toma conta da comunidade, o público testemunha o reflexo da política nos corpos de suas personagens. O autoritarismo se associa à tristeza, ao isolamento, ao corpo retraído. Quem salva a cidade são três crianças, construídas como figuras caricatas, baseadas nos clichês de infantilidade do corpo e da voz. As novas personagens, que mudam os rumos da história, abrem diálogo com a plateia, checando a compreensão por parte das crianças, o que traz um certo didatismo ao desfecho. Espectadores e espectadoras respondem ao chamado e opinam. “Tô nem aí pro tirano!”, diz uma criança.

Na sinopse, a companhia diz:

Clássico da literatura infantojuvenil brasileira, a peça de Ana Maria
Machado narra a história de um lugar feliz e colorido, não se sabe se
aqui pertinho ou muito longe, cujo povo perde sua liberdade a partir do
momento em que um ditador toma o poder. Após um longo tempo
cinzento, caracterizado por mandos e desmandos por parte do Tirano,
três crianças se conhecem e, com um arco-íris no bolso, uma canção no
corpo e uma chuvarada de estrelas, resolvem contagiar a população,
na tentativa de pôr fim àquele tempo de tristeza.

Essas imagens, por seu caráter imaginativo – um arco-íris no bolso e uma chuva de estrelas – associam a revolução social a armas lúdicas, poéticas e, por que não, artísticas. A poética intervenção das crianças promove a libertação da alegria e faz crescer uma flor dos olhos do submisso Lambe-Botas, em um desfecho que promove o encontro entre a ludicidade e a utopia. Se estamos no reino da mágica e da fantasia, não custa sonhar que a coletividade será sempre soberana. Desse modo, entre a fabulação e a metáfora política, o espetáculo “Era uma vez um tirano” responde à pergunta que fizemos no começo deste texto.

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Celso Guimarães Júnior é ator, dramaturgo, performer e, principalmente, entusiasta do teatro! Estuda Estética e Teoria do Teatro na Unirio e se aventuro a escrever sobre espetáculos que de alguma forma o atravessam com o intuito de aprender mais sobre teatro.

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