“(…) montando as águas da voz convocando os fantasmas.”
Um Rio Preso nas Mãos (Ana Paula Tavares)
“De repente, o longo gemido da sirene de um navio entrou
pela janela aberta e inundou o quarto em penumbra —
o grito de uma dor sem limites, sombria, exigente; escuro
como breu e glabro como o dorso de uma baleia,
sobrecarregado de todas as paixões das marés,
da memória de viagens fora de conta, de alegrias
e humilhações; o mar estava gritando.”
O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar (Yukio Mishima)
As águas são a epifania da Natureza, nos diz Manoel de Barros.
TURMALINA 18-50 é um espetáculo realizado pela CIA CERNE, companhia sediada na Baixada Fluminense. Com texto e direção de Vinicius Baião, a peça conta com seis atores no elenco: Diogo Nunes, Gabriela Estolano, Madson Vilela, Higor Nery, Graciana Valladares e Leandro Fazolla. O espetáculo nos leva até a história de João Cândido Felisberto e recebe como nome o último endereço que o mesmo habitou: Rua Turmalina Lote 18, Quadra 50, em São João de Meriti. O Almirante Negro, como era conhecido, desbravou mares para lutar pelos direitos dos marinheiros e foi o principal responsável pela Revolta da Chibata, em 1910, um movimento de insubordinação militar que visava acabar com os castigos físicos e as condições desumanas na Marinha Brasileira.
Filho de pais ex-escravizados, João Cândido se tornou um símbolo de resistência e coragem, lutando contra práticas cruéis e injustas em um contexto de extrema desigualdade racial e social.
Entendendo que estamos inseridos dentro de uma sociedade que privilegia as perspectivas das elites e dos grupos dominantes, o espetáculo nos apresenta a história que surge através dos olhos marejados do próprio João Cândido e de seus companheiros, trazendo um contexto heróico e histórico, desafiando a versão adulterada da história brasileira e sublinhando experiências que foram ignoradas ou distorcidas e nos colocando frente a frente com as lacunas cavadas pela colonização.
O espetáculo inicia com uma respiração coletiva, uma ocupação sonora feita pelos 6 atores em cena. Criando uma atmosfera lúdica, os atores emendam em uma reza, que por sua vez, é emendada em brincadeiras infantis que logo nos revelam o espaço-tempo onde a cena se passa (estamos em um tempo não muito distante da abolição da escravatura). João é comparado com um “animal selvagem que precisa ser domado”, e separado de sua família ainda muito jovem.
Começa então sua amizade instável com o mar, e viramos testemunhas das “águas revoltas do seu peito” e de uma vida de maresia, que termina em um mercado de peixes na Baixada Fluminense, sem direito a moradia em terra.
No início do espetáculo ja é estabelecido as trocas de personagens, ou o coringamento dos atores (mais especificamente do personagem e João Cândido, que transita por Diogo Nunes e Madson Vilela). A encenação não deixa que as trocas comprometam a dramaturgia, pelo contrário, a escolha de não manter personagens fixos fortalece o jogo de cena durante a apresentação. Os 4 atores (Gabriela Estolano, Higor Nery, Graciana Valladares e Leandro Fazolla) estão sempre alternando de personagens para compor a cena e os diferentes cenários e situações, se transformam em mães, filhas, amigos, inimigos, e figuras que navegam em cena atentas e confortáveis para jogar uns com os outros no palco, como ondas que desembocam na praia e contadores de história versáteis e ágeis.
O desenho de luz e a interação de cores traçam um diálogo poético com o espaço, texto, corpo e sons, como se fosse a própria luz um personagem ativo criando imagens diante de nossos olhos: como uma fresta de luz que entra tímida no porão de um navio, ou um raio de sol que nasce no horizonte pela manhã.
O cenário feito por Cachalote Mattos, opera em constante estado de transformação. A estrutura de ferro vira navio, prisão, trem, palco, varal de roupa, casa, cidade, poste de luz. É empurrada. É habitada. É navegada. Gira e se movimenta feito água.
A água também é personagem autônomo dentro da dramaturgia e vira lágrima no rosto de João, onda no meio do mar, exílio, solidão que sonha com um pedaço de terra e esbarra no corpo de mãe e filha queimadas com fogo, pensando na liberdade do vento que chega na proa e nos sussurra: “seria toda revolução uma aurora?”
Um novo começo?
Uma nova chance?
Uma esperança do tamanho de um orvalho?
ou uma gota no oceano capaz de gerar tsunamis?
Por fim, a estrutura vira uma espécie de instalação-escultura em homenagem a João Cândido Felisberto. Um altar que guarda uma âncora transformada em coroa de flores.
Vemos a passagem do tempo diante dos nossos olhos, e com ela as injustiças de um Brasil que ainda opera como moinho e máquina de triturar ossos. Com registros históricos e documentais, a peça cruza a vida de João Cândido com acontecimentos recentes, nos lembrando que as violências e rastros deixados pela escravidão não estão longe de nós, mas presentes todos os dias. Ao mencionar o caso ocorrido em um dos Supermercados Ricoy, em 2019, onde um adolescente negro foi torturado, a peça nos leva de volta às 250 chibatadas dadas por punição.
Usando o dispositivo de desmontagem cênica, o ator Diogo Nunes compartilha com o público a sua experiência no mundo enquanto um homem preto, gay e morador do Complexo do Alemão.
“Seria toda revolução uma aurora?”.
Não só vivemos em um país onde discursos foram deliberadamente apagados ou distorcidos, mas que nos relembra todos os dias do perigo do esquecimento e da importância do resgate histórico.
Apesar disso, uma coroa de flores. uma celebração da vida, muito mais do que a morte, e a poesia inserida nas feridas do mundo como forma de insistir na vida.
Deixar que o mar carregue as palavras que passam de boca em boca e não afogam nunca o legado fundamental de JOÃO CÂNDIDO FELISBERTO, como rio que corre e não dá ré.
Além do lembrete – “encruzilhada não é labirinto” – sublinho uma outra frase dita durante o espetáculo: “liberdade se conquista organizadamente”.
Penso nos grãos de areia minúsculos, que juntos formam grandes faixas na praia e me pergunto: o que as areias e as águas nos contam sobre um lugar?
Eu daqui, sentada em um quarto na Zona Oeste, tento escrever esse texto usando palavras enquanto penso em minha avó analfabeta e me junto, através das teclas do computador, ao coro dos atores ao fim do espetáculo, que celebram a vida do Almirante Negro anunciando glórias:
Glórias ao povo de santo, professores, artistas, trabalhadores das periferias, comunidade lgbtqiapn+, mães e mulheres pretas, Marielle, direitos humanos e ao mar. Eu daqui: dou glórias a todos que nadam contra a maré e que acreditam nas águas que curam, mas que também são armas de guerra capazes de destruir mundos, inundar cidades, afogar línguas, soterrar morros e confabular ruínas.

Gaba Cerqueda é artista interdisciplinar, pesquisadora e escritora. Atualmente cursa Licenciatura em Teatro (UNIRIO), tendo se formado no Núcleo de Formação Intensiva em Dança Contemporânea (Centro de Artes da Maré). Pensando em encenações cruzadas, seus processos costumam habitar a intersecção entre artes visuais, escrita, dança, teatro e performance. Atua no carnaval de rua e dentro da universidade desenvolve a pesquisa de iniciação científica (CNPq): “Nunca tocar uma coisa só: a desmontagem cênica como prática de cruzo”.