O RISO COMO PONTE PARA O AFETO: PALHAÇARIA E ACESSIBILIDADE EM “UMA SAGA NA QUARENTENA” | Por Heder Braga

Em tempos de isolamento e desafios emocionais como os vividos durante a pandemia do Covid 19, a palhaçaria assume um papel renovado e crucial. O espetáculo “Uma Saga na Quarentena”, da Cia Sol Sem Dó de Duque de Caxias, nos apresenta uma narrativa capaz de ressignificar os gestos cotidianos e os afetos simples através do olhar inocente e lúdico da palhaçaria. A montagem, assistida no SESC Madureira em 06 de outubro de 2024, transcende o riso fácil, explorando os limites emocionais de uma sociedade em crise e a importância de se reconectar com o outro, tudo isso com um toque de afeto, humor e uma clara preocupação com a acessibilidade.

A palhaçaria, enquanto linguagem cênica, tem o poder de comunicar-se diretamente com o público, rompendo barreiras de idade e linguagem. Em “Uma Saga na Quarentena”, essa tradição se renova ao mostrar como o palhaço pode transformar os pequenos dilemas do cotidiano – como a busca de Neca de Catibiriba (Letícia Lisboa) por sua meia perdida – em metáforas profundas sobre apego e afeto. A personagem, em sua simplicidade, evoca uma humanidade tocante, que de alguma forma lembra à Félicité, protagonista da novela “Um Coração Simples”, de Gustave Flaubert. Ambas compartilham a vida pautada por pequenas tragédias e grandes sentimentos, retratando a capacidade de amar e se apegar aos detalhes da vida cotidiana.

A dramaturgia de Luciana Borges, sob a direção de Cristiane Muñoz, equilibra com precisão o humor e a profundidade, um dos grandes desafios da palhaçaria. A peça nos convida a refletir sobre o isolamento e as dificuldades de comunicação contemporâneas, abordando com sutileza o impacto emocional da pandemia. A cena em que Neca tenta, sem sucesso, se comunicar com o vizinho (Jessé Cabral) desatento levanta uma crítica à alienação e à falta de conexão humana em tempos de hiperconectividade. O espetáculo evidencia como, mesmo com tantas ferramentas tecnológicas, a comunicação autêntica tornou-se cada vez mais difícil.

No campo dos estudos sobre palhaçaria, Mário Fernando Bolognesi defende que o palhaço é uma figura essencialmente subversiva, capaz de provocar riso ao expor fragilidades humanas e subverter expectativas sociais. Em “Uma Saga na Quarentena”, isso se reflete no humor inteligente que se nutre de situações cotidianas – como a mania de levar o celular ao banheiro ou higienizar excessivamente as compras com álcool – e as transforma em momentos de identificação e crítica social.

Além disso, o espetáculo se destaca por sua rica linguagem visual, em especial pela projeção animada de Tiago Carva, que transforma a janela do cenário em paisagens lúdicas e imaginativas. Um dos momentos mais marcantes é a animação em que a meia de Neca se transforma em uma ave e voa pelo céu, lembra uma passagem da peça infantil A Menina e o Vento (1962), de Maria Clara Machado, onde a protagonista viaja por diversas paisagens ao subir na cacunda do vento. Essa referência poética reforça o caráter onírico e expansivo da montagem, envolvendo o espectador em um universo de fantasia. O design de Tatch Pereira dialoga harmoniosamente com essas animações, criando uma estética visual que potencializa a atmosfera mágica do espetáculo. Juntos, esses elementos constroem uma experiência sensorial que amplia o alcance emocional da narrativa, convidando o público a embarcar nessa viagem cheia de sutilezas e encantamento.

Outro ponto que merece destaque é a direção musical de Beto Gaspari, que traz uma proposta criativa ao incorporar sons de objetos que a princípio não são vistos como instrumentos musicais, como garrafas PET, ralador de cozinha, megafone, entre outros. Essa escolha evidencia a inventividade da montagem, criando uma trilha sonora singular que dialoga perfeitamente com a estética da palhaçaria, onde o inusitado e o improviso são parte essencial do espetáculo. O ator e multi-instrumentista Jessé Cabral, que divide o palco com Letícia Lisboa, é responsável por grande parte dos sons, onomatopeias e pela manipulação dos instrumentos, enriquecendo ainda mais a composição sonora. Essa interação musical, reforça o engajamento sensorial do público, especialmente o infantojuvenil, que se vê imerso em uma experiência lúdica.

A preocupação com a acessibilidade também é um aspecto fundamental do projeto. A inclusão de sessões em Libras, o cuidado com a moderação do som e da luz para evitar incômodo a pessoas sensíveis são iniciativas que tornam o espetáculo mais inclusivo. A diretora Cristiane Muñoz, que é duplo-neuro divergente (autista e superdotada), traz para a cena uma sensibilidade singular, garantindo que o teatro seja um espaço de convivência para todos. A preocupação com a acessibilidade evidencia um teatro comprometido em tornar suas histórias e experiências cênicas acessíveis, o que reforça a importância de iniciativas como essa em tempos onde a inclusão é uma necessidade urgente.

A cenografia e os figurinos de Higor Nery, somados à iluminação de Rodrigo Villas Boas, criam um universo visual que reforça a simplicidade e a profundidade da personagem Neca. O mundo azul (cor predominante) da palhaça é representado com adereços simbólicos – como o travesseiro suspenso que remete à cama, ou a parede ao redor do vaso sanitário feita de rolos de papel higiênico – que dialogam com a estética do lúdico. Essa ambientação minimalista, aliada à iluminação suave, torna o cenário um reflexo do estado emocional da protagonista, ampliando a potência dramática da peça.

“Uma Saga na Quarentena” é um sopro de ternura em meio ao caos, uma celebração do riso como caminho para o afeto. No palco, os gestos mais simples ganham dimensões poéticas, transformando a busca de uma palhaça por sua meia perdida em uma metáfora para os vínculos que nos mantêm próximos, mesmo quando o mundo nos afasta. A Cia Sol Sem Dó nos convida a refletir sobre como o humor, em sua delicadeza, é capaz de costurar feridas invisíveis e transformar a solidão em partilha. Em tempos de silêncio e desencontro, o espetáculo nos lembra que o riso não é só um refúgio, mas uma ponte — uma forma de nos reconstruirmos juntos, com leveza e humanidade.

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Ator, diretor e produtor teatral, é doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, onde também se graduou em Estética e Teoria do Teatro, e Mestre em Estudos de Teatro pela Universidade do Porto, integra a equipe do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana. Sua trajetória inclui colaborações com profissionais como Ricardo Kosovski, Ivan Sugahara, Diego Morais, Pedro Kosovski, Isaac Bernat, Lázaro Ramos, Daniel Herz, Renato Rocha, André Matos e Bibi Ferreira. Destaca-se também como pesquisador na área de teatro para a infância

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