UMA SAGA PARA OUTRA SAGA | Por Celso Guimarães Júnior (com a colaboração de Rosyane Trotta)

A CIA SOL SEM DÓ, sediada em Duque de Caxias, é composta por amigos e familiares que trabalham para manter uma arte independente. Ao longo de quase quinze anos de intervenções artísticas, a companhia vem persistindo no cenário da Baixada Fluminense e o testemunho dessa trajetória aparece no espetáculo em circulação Uma Saga na Quarentena. No dia 4 de setembro de 2024, acompanhei o grupo em uma apresentação realizada na cidade de Petrópolis, desde sua saída da sede, ao nascer do dia, até o retorno, e foi emocionante ver de perto todo o trabalho por trás de uma apresentação.

A experiência que consolidou a companhia e sua linguagem foi adquirida dentro dos vagões da linha de trem que ligava o centro a Saracuruna, bairro de sua cidade, onde faziam intervenções e passavam o chapéu nos primeiros anos de existência. Além de fonte de sobrevivência, a atuação direcionada aos passageiros da ferrovia foi a fonte de exercício e formação técnica. Antes mesmo de construir seu primeiro espetáculo, a companhia idealizou e produziu um festival de palhaçaria que, ao longo de sete edições, se tornou referência em Duque de Caxias.

A companhia vem se dedicando desde os primeiros anos ao estudo da comicidade e da palhaçaria. “Uma Saga na Quarentena” estreou em 2021 e, se naquele momento falava de uma crise em curso, hoje transporta o espectador para os dias de reclusão. Com humor e simplicidade cênica, a montagem dirigida por Cristiane Muñoz, com dramaturgia de Luciana Borges, explora o cotidiano da palhaça Neca de Catibiriba (Letícia Lisboa) e seu companheiro de cena, Jessé Cabral, que atua em diversos personagens e funções como contraponto à protagonista. A história parte de um incidente: a meia de Neca vai parar no apartamento do vizinho.

A performance de Letícia Lisboa cativa adultos e crianças. A atuação de Jessé Cabral amplia e potencializa a interpretação da parceira e a comicidade das cenas. Sem os adereços tradicionais do palhaço e com liberdade de trânsito entre funções e espaços, Jessé cria o elo entre a palhaça reclusa e o mundo externo. Essa dinâmica, que separa as duas figuras no espaço cênico, reflete o distanciamento físico e emocional experimentado durante a pandemia. A palhaça Neca busca sua meia favorita em uma série de eventos desastrosos, enquanto o outro palhaço, como um observador, interage com a cena por meio de efeitos sonoros que instauram e ampliam a tensão cômica da narrativa.

A plateia, composta por crianças e adultos, responde com risos e aplausos ao espetáculo, mostrando que a relação cômica entre a dupla transcende o tempo e o contexto da pandemia, talvez porque o isolamento social esteja de certo modo se ampliando em nosso modo de vida. A dramaturgia do corpo no espetáculo vai além do entretenimento: há uma referência sensível às questões da neuro divergência, ainda que essa camada não fique evidente para todos os espectadores. Tal simbolismo dá à obra uma profundidade inesperada, fazendo a experiência avançar para além do riso.

Na visualidade cênica, criada por Higor Nery, simples e eficaz, predominam os tons de azul e branco, pontuados por elementos como girassóis e detalhes em vermelho, que remetem à palhaçaria tradicional. O cenário é simbólico e, por vezes, surrealista, como a parede feita de papel higiênico — uma referência aos estoques de sobrevivência durante a quarentena. Essa economia de detalhes visuais permite que o público complete os vazios com sua própria imaginação, focando nas ações dos palhaços e no melodrama tragicômico da cena.

Senti falta de uma interação mais direta com o público ao longo do espetáculo. Embora a quebra da quarta parede ocorra em alguns momentos, o jogo e a triangulação entre plateia e palhaços poderiam ser mais explorados, especialmente por se tratar de uma linguagem que permeia a teatralidade circense, que pede uma participação mais ativa do espectador.

O final da montagem é doce, com uma música ao vivo que embala o público em um encerramento suave e alegre, como as comédias populares de circo. A viagem proposta pelo espetáculo nos faz refletir sobre a capacidade do teatro de transformar memórias difíceis em momentos de leveza. “Uma Saga na Quarentena” nos aproxima como coletivo, e, ao mesmo tempo, nos permite revisitar a memória de um período desafiador com um sorriso no rosto. A Cia Sol sem Dó nos convida a uma jornada de redescoberta de nós mesmos, através do riso e da arte.

___________________________________________________________________________________________

Celso Guimarães Júnior é ator, dramaturgo, performer e, principalmente, entusiasta do teatro! Estuda Estética e Teoria do Teatro na Unirio e se aventuro a escrever sobre espetáculos que de alguma forma o atravessam com o intuito de aprender mais sobre teatro.

Outras Críticas